A imparcialidade do juiz e a não vinculação à capitulação da denúncia
Análise do papel do juiz frente à classificação jurídica proposta pelo Ministério Público e à validade das provas no processo penal.
Quero abordar a questão da não vinculação do órgão julgador, ou seja, do juiz, à capitulação jurídica proposta pelo Ministério Público na denúncia. Como o processo penal é estruturado de forma lógica, composto por duas partes – acusação e defesa –, seria incoerente admitir que o juiz esteja vinculado à classificação jurídica sugerida por apenas uma dessas partes. Afinal, o juiz deve manter sua imparcialidade e julgar de acordo com seu livre convencimento motivado, ou seja, com base nas provas produzidas ao longo do processo.
O artigo 383 do Código de Processo Penal é claro ao estabelecer que “o juiz, sem modificar a descrição do fato contida na denúncia ou queixa, poderá atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha de aplicar pena mais grave”. Isso significa que o juiz não julga a capitulação jurídica, mas sim os fatos trazidos ao processo.
Quando o Ministério Público acusa alguém da prática de um crime, nos termos do artigo 41 do Código de Processo Penal, está obrigado, sob pena de rejeição da denúncia, a expor detalhadamente o suposto fato criminoso, a qualificação do acusado, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.
O procedimento pode ser resumido da seguinte forma: a polícia investiga o crime, produz as provas necessárias, identifica a possível autoria e elabora um relatório com suas conclusões, encaminhando essas informações ao Ministério Público. Este, por sua vez, ao entender que existem elementos suficientes para a instauração de uma ação penal, oferece a denúncia perante o Poder Judiciário, incluindo, por exigência legal e técnica, as capitulações jurídicas que entende apropriadas para qualificar os fatos apurados.
É importante destacar que as provas produzidas no inquérito policial devem ser confirmadas na fase de instrução processual para servirem de base a uma eventual condenação judicial. Por exemplo: suponha que o Ministério Público acuse alguém de lavagem de dinheiro com base em um Relatório de Inteligência Financeira que indique movimentação atípica nas contas do acusado. Se, durante a instrução processual, a defesa comprovar que, embora o réu tenha utilizado recursos de origem criminosa, ele não tinha ciência dessa ilicitude nem participou de atos de ocultação ou dissimulação, a capitulação jurídica inicialmente proposta (lavagem de dinheiro) não será suficiente para fundamentar a condenação.
Em resumo: embora o réu tenha sido processado por lavagem de dinheiro, a classificação jurídica sugerida pelo Ministério Público não obrigou o juiz a condená-lo necessariamente por tal delito.
Confira trechos de duas ementas, extraídas respectivamente da Ação Penal 470, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, e do AgRg no RHC n. 189.653/PR, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça:
A condenação pelo delito de lavagem de dinheiro depende da comprovação de que o acusado tinha ciência da origem ilícita dos valores.
Em relação ao delito de lavagem de dinheiro, esta Corte Superior tem entendido ser desnecessário que o autor do crime de lavagem de capitais tenha sido autor ou partícipe do delito antecedente, bastando que tenha ciência da origem ilícita dos bens e concorra para sua ocultação ou dissimulação.
É importante destacar também que, para que a prova penal seja válida, ela deve observar a legislação ordinária que regulamenta sua produção e utilização. Por exemplo, se a polícia obteve uma prova penal por meio de interceptação telefônica, e, durante a instrução processual, restar comprovado que essa prova não respeitou os limites estabelecidos pela Lei 9.296/1996 — isto é, se a defesa conseguir demonstrar que a prova poderia ter sido obtida por meio menos invasivo, em afronta ao artigo 2º, inciso II, da referida lei —, o magistrado pode declarar a prova ilícita e determinar seu desentranhamento dos autos.
Outro exemplo é a utilização da quebra de sigilo telemático (“quebra de nuvem”) como primeiro ato investigativo em crimes contra a ordem tributária, quando ainda não há constituição definitiva do crédito fiscal. Nessa hipótese, estaríamos diante de flagrante ilegalidade na obtenção da prova penal, ainda que a quebra de sigilo permitisse a descoberta eventual de outras infrações penais ("encontro fortuito de provas"). Como a quebra de sigilo telemático ocorreu em razão de um crime ainda inexistente — já que só há crime tributário após a constituição definitiva do crédito tributário —, toda a cadeia de custódia da prova deve ser considerada nula.
Em suma, embora as capitulações jurídicas apresentadas na denúncia possam servir de subsídio para a instauração da ação penal, o processo penal brasileiro consagra o princípio da imparcialidade judicial, assegurando que o juiz não está vinculado à classificação jurídica sugerida pelo Ministério Público ou por qualquer das partes, mas sim aos fatos estabelecidos nos autos e ao seu livre convencimento motivado.
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