Coluna Penal 360

Ricardo Henrique Araújo Pinheiro

Legalidade da prova penal: da materialidade à validade processual

A importância do respeito à legislação e à jurisprudência para a admissibilidade da prova criminal.

24 de junho de 2025 às 11:13
8 min de leitura

Quando falamos em prova criminal, é fundamental compreender que, inicialmente, a responsabilidade pela sua produção recai sobre o Estado, por meio de seus órgãos de persecução penal – a Polícia e o Ministério Público. Esses órgãos são responsáveis por apurar indícios, materialidade e autoria de um crime.

Isolamento da área de um crime - Foto de Daniel von Appen na Unsplash

Materialidade refere-se ao próprio fato criminoso: o estelionato em si, a apropriação indébita em si, o homicídio em si – é o que chamamos de materialidade delitiva. Já a autoria delitiva diz respeito à pessoa que praticou, ordenou ou contribuiu para a prática da infração penal.

Para que a prova seja válida dentro do ordenamento jurídico, não basta que ela apenas aparente legalidade; ela precisa ser, de fato, legal. Em investigações de crimes financeiros, por exemplo, é comum o uso de relatórios de inteligência financeira (RIF) elaborados pelo COAF, que podem indicar uma possível materialidade e autoria delitivas. Entretanto, para que essa prova seja considerada legítima, é imprescindível que respeite não só a legislação infraconstitucional e constitucional, mas também a jurisprudência atual das Cortes Superiores.

Ricardo Pinheiro.

No nosso sistema jurídico, a acusação formal de uma pessoa só pode ocorrer com base em provas efetivamente legais. Diversos precedentes ilustram situações em que investigações foram anuladas pelo Judiciário justamente pela inobservância de requisitos previstos pelas Cortes Superiores quanto à produção de determinadas provas penais.

Um exemplo emblemático é o caso da Operação Castelo de Areia, no qual o Superior Tribunal de Justiça anulou a decisão que havia recebido a denúncia, devido a vícios na produção da prova paradigmática – ou seja, a prova que deu origem à investigação. O colegiado entendeu que a operação foi iniciada com base em uma denúncia anônima que não foi previamente verificada, o que comprometeu a regularidade processual.

Essa falha resultou na nulidade da decisão que autorizou o afastamento dos sigilos constitucionais dos investigados, bem como de todas as demais provas obtidas a partir dessa investigação. Consequentemente, o processo foi integralmente anulado pelo tribunal.

Confira trechos da ementa desse caso:

As garantias do processo penal albergadas na Constituição Federal não toleram o vício da ilegalidade mesmo que produzido em fase embrionária da persecução penal.

A denúncia anônima, como bem definida pelo pensamento desta Corte, pode originar procedimentos de apuração de crime, desde que empreendida investigações preliminares e respeitados os limites impostos pelos direitos fundamentais do cidadão, o que leva a considerar imprópria a realização de medidas coercitivas absolutamente genéricas e invasivas à intimidade tendo por fundamento somente este elemento de indicação da prática delituosa.

A exigência de fundamentação das decisões judiciais, contida no art. 93, IX, da CR, não se compadece com justificação transversa, utilizada apenas como forma de tangenciar a verdade real e confundir a defesa dos investigados, mesmo que, ao depois, supunha-se estar imbuída dos melhores sentimentos de proteção social.

Verificada a incongruência de motivação do ato judicial de deferimento de medida cautelar, in casu, de quebra de sigilo de dados, afigura-se inoportuno o juízo de proporcionalidade nele previsto como garantia de prevalência da segurança social frente ao primado da proteção do direito individual.

Ordem concedida em parte, para anular o recebimento da denúncia da Ação Penal n.º 2009.61.81.006881-7.

(HC n. 137.349/SP, relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Sexta Turma, julgado em 5/4/2011, DJe de 30/5/2011.)

Outro exemplo recente envolve investigações relacionadas ao INSS, que correm o risco de serem anuladas devido a indícios de irregularidades em sua fundamentação. Ao que tudo indica, as investigações foram baseadas em Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) solicitados pela polícia e pelo Ministério Público sem a devida autorização judicial. Esses relatórios serviram de base para a realização de outras diligências, como bloqueio de contas bancárias e sequestro de bens. Caso essa falha procedimental seja comprovada, essas provas poderão ser declaradas nulas pelo Poder Judiciário.

Embora o Ministro Flávio Dino tenha, provisoriamente, cassado a decisão da Quarta Vara Criminal de São Paulo que havia determinado a exclusão dos RIFs do processo, é certo que o caso ainda terá novos desdobramentos processuais. Isso porque a Terceira Seção do Superior Tribunal de Justiça, em conformidade com o Tema 990 do Supremo Tribunal Federal, já firmou o entendimento de que a produção de RIFs no curso de uma investigação depende de autorização judicial prévia.

Portanto, quando se ouve a expressão de que a polícia prende e o Judiciário solta, muitas vezes isso decorre justamente do fato de a prova que embasou determinada prisão ou investigação possuir apenas aparência de legalidade, sendo, na realidade, uma prova ilícita, incapaz de justificar restrições de liberdade ou de patrimônio.

É essencial compreender que o sistema jurídico brasileiro não admite provas meramente com aparência de legalidade – elas devem, necessariamente, ser legais e respeitar toda a cadeia de custódia. Isso é especialmente importante em crimes sem violência ou grave ameaça, em que a investigação precisa ser proporcional: não se pode iniciar com medidas invasivas, como interceptação telefônica ou prisão, para só depois recorrer a providências menos invasivas, como a quebra de sigilo bancário.

Em resumo, no processo penal brasileiro, a prova só será válida – e capaz de justificar investigação, prisão ou expropriação de bens – se tiver sido produzida em conformidade com a legislação infraconstitucional, constitucional e a jurisprudência das Cortes Superiores. Por isso, todas as diligências devem ser precedidas de uma análise criteriosa da jurisprudência atual, garantindo a legitimidade das provas e a efetiva punição daqueles que cometeram infrações penais. Do contrário, continuaremos a assistir à anulação de provas e declarações de nulidade pelo Poder Judiciário.

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