Reflexões sobre o funkeiro investigado por "narcocultura"
Investigando a coerência da integração do sistema penal diante de imputações de crimes inexistentes no ordenamento jurídico.
Quero refletir sobre o funcionamento do nosso sistema de persecução criminal e questionar se ele realmente atua de maneira integrada para alcançar o objetivo principal do direito penal: a aplicação da lei. É crucial que o sistema seja visto de forma integrada. Isso significa que a produção de provas pela polícia deve ser validada pelo Poder Judiciário, em conformidade com a legislação infraconstitucional e constitucional, e respeitando o princípio da estrita legalidade em matéria penal. A criação de leis penais não pode ser arbitrária; é fundamental seguir o conjunto de normas processuais e penais vigentes no país para garantir que o direito penal seja aplicado corretamente, conforme estabelecido pelo artigo 5º, inciso XXXIX, da Constituição Federal.
XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;
Inicialmente, a prova costuma ser produzida pela polícia, que tem o primeiro acesso à evidência criminal. Depois, passa pelo Ministério Público e finalmente chega ao Poder Judiciário. O artigo 155 do Código de Processo Penal determina que as provas do inquérito policial precisam ser confirmadas na instrução processual para terem validade. Provas obtidas apenas no inquérito não são suficientes para condenação, e uma sentença judicial não pode se basear unicamente nessas provas.
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Essa reflexão surge ao observar a prisão de um funkeiro acusado de um crime inexistente, denominado "narcocultura" pela polícia. De acordo com informações divulgadas pela imprensa, a polícia alegou que os shows do artista caracterizariam apologia ao crime, tentando enquadrá-lo em uma infração penal inexistente no nosso ordenamento jurídico, que chamaram de "narcocultura." É fundamental destacar que, conforme o artigo 5º, inciso IX, da Constituição Federal, é livre a expressão artístico-cultural, sem censura ou licença.
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
O funk, ainda que suas letras contemplem expressões violentas ou criminais, não pode ser interpretado subjetivamente como crime. A prisão por "narcocultura" é assustadoramente baseada em uma interpretação subjetiva e infundada, pois esse crime não existe no ordenamento jurídico.
A propósito, a Lei 14.940, de 30 de julho de 2024, reconheceu a importância do funk para a cultura brasileira e estabeleceu o dia 12 de julho como o Dia Nacional do Funk.
Art. 1º Fica instituído o Dia Nacional do Funk, a ser celebrado, anualmente, no dia 12 de julho, em todo o território nacional.
Assim, criminalizar o que não constitui crime não é função do Brasil. Isso revela fragilidade, despreparo e um descompasso, além de uma total falta de preocupação com a validade das provas. As provas produzidas no inquérito policial devem ser validadas sob o crivo do contraditório. Em nenhuma circunstância o Estado validará uma prova baseada em um crime inexistente no ordenamento jurídico.
Prender com o único objetivo de prejudicar a reputação é prejudicial ao Estado, que poderia utilizar esses recursos em ações que realmente contribuam para a solução de crimes mais graves, como homicídios. A prisão deve ter um fundamento sólido para ser válida. No Estado Democrático de Direito, não se pode aceitar prisões baseadas em fundamentos tecnicamente inexistentes, sendo imprescindível que o princípio da estrita legalidade em matéria criminal prevaleça.
Assim, nossa reflexão destaca a necessidade de um sistema de persecução criminal que atue dentro da legalidade e com o propósito de aplicar a Justiça. A verdadeira função do Poder Judiciário é garantir a Justiça, e não prender apenas para prejudicar a reputação de alguém.
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