Limites da responsabilidade penal e a teoria da cegueira deliberada
Teoria, que navega pela sutil distinção entre a ignorância intencional e a cumplicidade em atos ilícitos, tem sido central em análises judiciais.
Por Ricardo Henrique Araújo Pinheiro
Direto de Brasília
Em uma sequência de decisões impactantes, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se debruçado sobre a intrincada teoria da cegueira deliberada, esclarecendo os limites da responsabilidade penal no Brasil. Essa teoria, que navega pela sutil distinção entre a ignorância intencional e a cumplicidade em atos ilícitos, tem sido central em análises judiciais que examinam a postura de indivíduos que, ao decidirem ignorar a ilicitude de suas ações, almejam alcançar benefícios específicos.
Durante o julgamento do AgRg no REsp n. 1.565.832/RJ, conduzido pela Quinta Turma do STJ em 6 de dezembro de 2018, sob a relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornik, a aplicação da teoria da cegueira deliberada foi minuciosamente discutida. De acordo com a interpretação do tribunal, a teoria exige a apresentação de provas claras e inequívocas que ilustrem a decisão consciente do agente de fechar os olhos diante de uma situação claramente ilícita. Esse comportamento, que se manifesta na atitude de simular ignorância perante uma realidade ilegal, tem como objetivo a obtenção de uma vantagem específica, delineando um cenário onde a responsabilidade penal é meticulosamente avaliada à luz dessa teoria.
Trechos da ementa:
Para que ocorra a aplicação da teoria da cegueira deliberada, deve restar demonstrado no quadro fático apresentado na lide que o agente finge não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida.
No julgamento do AREsp n. 2.157.427, conduzido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) sob a relatoria do Ministro Joel Ilan Paciornik, a teoria da cegueira deliberada foi aplicada com rigor. Esta teoria estabelece que um indivíduo pode ser responsabilizado penalmente se for demonstrado que, consciente ou fortemente suspeito de seu envolvimento em atividades ilícitas ou questionáveis, optou deliberadamente por ignorar a ilegalidade ou os detalhes específicos das transações em questão, visando obter um benefício criminoso. Tal comportamento é interpretado como equivalente ao dolo eventual, no qual o agente aceita o risco de provocar um desfecho ilícito.
Trechos da ementa:
In casu, aplicável ao caso a teoria da cegueira deliberada, segundo a qual pune-se o agente quando restar demonstrado que este, ciente ou suspeitando seguramente que esteja envolvido em negócios escusos ou ilícitos, deliberadamente toma medidas para se certificar de que não irá adquirir o pleno conhecimento ou a exata natureza das transações realizadas para um intuito criminoso, assemelhando-se ao dolo eventual.
Na análise do AREsp n. 2.247.534, em 9 de fevereiro de 2023, sob a relatoria do Ministro Ribeiro Dantas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) abordou um tema fundamental para a responsabilidade penal no contexto jurídico brasileiro. A corte salientou que a legislação nacional rejeita a imputação de responsabilidade penal de forma objetiva ou baseada na presunção de envolvimento em atos ilícitos, meramente devido à posição ocupada pelo sujeito dentro de uma estrutura corporativa. A decisão reforçou a premissa de que, para a efetivação da responsabilidade penal, é imprescindível a existência de um vínculo causal claro entre a conduta do indivíduo e o crime cometido, além da necessidade de provas sólidas que conectem diretamente o acusado à infração penal.
Trechos da ementa:
(...)Ocorre que o ordenamento jurídico brasileiro impede a responsabilização penal objetiva ou por presunção de conhecimento de fatos e da possibilidade de impedi-los pela ocupação de posição específica em estrutura empresarial.
(...) Não há o demonstrado e exigível nexo de causalidade entre o crime e o agente, nenhuma circunstância que vincule o réu, no campo fático e probatório, à ação delituosa investigada
(...) Em resumo, o Tribunal local elencou diversos fatos que, realmente, geram alguma suspeita sobre o procedimento adotado pelo réu; não obstante, à míngua do apontamento de provas especificamente relacionadas à prática de alguma conduta específica de sua parte, é necessária a absolvição do acusado, por ausência de comprovação da materialidade delitiva.
Em maio de 2020, durante a análise da admissibilidade da denúncia na APn n. 940/DF pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça (STJ), foi estabelecido um marco importante sobre o crime de lavagem de dinheiro oriundo do recebimento dissimulado de honorários advocatícios. Com base na aplicação da teoria da cegueira deliberada, o STJ entendeu que o recebimento de valores significativos a título de honorários advocatícios pode ser considerado um indicativo de lavagem de dinheiro, especialmente quando os montantes recebidos são desproporcionais em relação à qualificação do advogado e à complexidade dos serviços prestados.
Trechos da ementa:
O recebimento de vultosas quantias a título de remuneração pelo exercício de atividade advocatícia pode configurar indício da prática de lavagem de dinheiro quando incompatível com o grau de especialização do profissional e das tarefas praticadas e quando presentes evidências de que os pagamentos se deram em decorrência de atividades ilícitas.
O empréstimo do nome e da posição jurídica de pretenso proprietário das terras configura, no caso, indício suficiente de autoria dos delitos imputados, sendo inverossímil a alegação de ausência de dolo, direto ou eventual, especialmente considerando a possibilidade de aplicação da teoria da cegueira deliberada.
A análise das decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre a teoria da cegueira deliberada revela um esforço contínuo e meticuloso para delinear os limites da responsabilidade penal no Brasil. Esta teoria, que se situa na interseção entre a ignorância intencional e a cumplicidade em atos ilícitos, tem sido fundamental para a compreensão e aplicação da responsabilidade penal em casos complexos.
A jurisprudência do STJ, exemplificada pelos julgamentos do AgRg no REsp n. 1.565.832/RJ, AREsp n. 2.157.427, AREsp n. 2.247.534 e APn n. 940/DF, destaca a necessidade de provas claras e inequívocas que demonstrem a decisão consciente do agente de ignorar a ilicitude de suas ações para obter vantagens específicas. A aplicação da teoria da cegueira deliberada exige um exame minucioso das circunstâncias fáticas, evidenciando a escolha deliberada do agente em desconsiderar a presença de um ato ilícito, comportamento que se equipara ao dolo eventual.
Essas decisões sublinham a importância de um vínculo causal explícito entre a conduta do indivíduo e o crime cometido, afastando a imputação penal baseada em suposições ou na posição ocupada pelo sujeito dentro de uma organização. A jurisprudência do STJ rejeita a responsabilidade penal objetiva ou presumida, enfatizando que a atribuição de responsabilidade deve ser fundamentada em provas substanciais que conectem diretamente o acusado à infração penal.
A aplicação rigorosa da teoria da cegueira deliberada, conforme demonstrado nos casos analisados, abrange desde a responsabilização penal em situações de lavagem de dinheiro com honorários advocatícios desproporcionais até a negação de responsabilidade objetiva por atos ilícitos. Essa abordagem promove a justiça e a imparcialidade nas decisões judiciais, assegurando que apenas aqueles que conscientemente optam por desconsiderar a legislação em prol de vantagens indevidas sejam responsabilizados.
Em suma, a perspectiva adotada pelo STJ sobre a teoria da cegueira deliberada reforça o sistema legal brasileiro no combate ao crime, garantindo uma aplicação da lei que seja ao mesmo tempo rigorosa e equitativa. Esta compreensão contribui para uma distinção precisa entre a omissão passiva e a participação ativa, promovendo a justiça e a integridade no contexto jurídico brasileiro.
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Fontes
- AgRg no REsp n. 1.565.832/RJ, relator Ministro Joel Ilan Paciornik, Quinta Turma, julgado em 6/12/2018, DJe de 17/12/2018
- AREsp n. 2.157.427, Ministro Joel Ilan Paciornik, DJe de 10/02/2023
- AREsp n. 2.247.534, Ministro Ribeiro Dantas, DJe de 09/02/2023
- APn n. 940/DF, relator Ministro Og Fernandes, Corte Especial, julgado em 6/5/2020, DJe de 13/5/2020
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