Lugar de Fala

WILLIAN TITO: Peça piauiense em cartaz no Torquato Neto dá aula de interpretação

“A nobreza dos despossuídos” é frase do texto que salta da boca cheia de palavras. Repetir é acentuar

18 de abril de 2024 às 18:36
13 min de leitura

Na quarta-feira, 17 de abril, assisti pela segunda vez ao monólogo “O que te Escrevo é Puro Corpo Inteiro”. A primeira foi no ano passado, mais ou menos por essa época. Estava programado para ver novamente e preparar uma resenha crítica, mas fui acometido por uma chincungunya que me deixou fora de combate por mais de três meses diretos. Com as articulações muito inchadas, os dedos nem conseguiam dobrar nem fechar. Escrever, sem nenhuma chance. Um ano depois, estou de volta.

Para quem ainda não conhece, se for curioso, terá um encontro com escritores consagrados, que são citados em trechos de suas obras, mencionando seus comentários sobre temas diversos e abrindo uma intimidade que só os que leem podem ter. Um desfile de gigantes: Fyodor Mikhailovitch Dostoievski, Adeline Virgina Woolf, Ernest Miller Hemingway, William Shakespeare, James Augustine Aloysius Joyce, Friedrich Wilhelm Nietzsche, Giordano Bruno, Dante Alighieri. Apesar de não citar nominalmente Gabo, mencionou o realismo fantástico, que o autor de “Cem Anos de Solidão” foi o maior representante.

Em cartaz desde 2020, o espetáculo já percorreu uma boa estrada e está amadurecido. Inclusive fora do estado. Em maio do ano passado, esteve em temporada no Rio de Janeiro. Trata-se de uma bem urdida dramaturgia que mergulha na vida de um personagem professor de literatura, que está há 30 anos na rotina da aula diária. Solitário, vive entre os delírios dos textos em prosa e poesia de grandes artistas das letras.

O professor chega e anuncia a sua aula-espetáculo, sendo a plateia os alunos. Vestindo apenas uma bermuda de algodão cru, entre queixas de dores na coluna vertebral, vai intercalando momentos de plena lucidez com as alucinações. Goles generosos em uma garrafa que supostamente tenha uma aguardente vagabunda, abre o armazém de memórias e destila suas agruras e prazeres decorrentes da profissão. Em dado momento, o mestre fala e repete: “Esta geração é feita de medíocres”. Tenho que concordar, em grande parte.

“A nobreza dos despossuídos” é frase do texto que salta da boca cheia de palavras. Repetir é acentuar. Marcando. Fixando na mente atenta. Justifica a vida fransciscana e espartana. Diz muito do desvelo do educador. Em meio a livros, que parecem surgir de todos os lados, um birô semelhante ao de um preceptor, clássico, monta a cena. A paupéria material em pacífica convivência com o luxo do conhecimento. Até pendurados em linhas que descem do teto. É filme. É impossível não ficar imaginando uma porção de objetos de uma sala de aula levitando no espaço.

Vitorino, em cena-Foto: Lupa1

Às vezes, em meio aos micro surtos, uma combinação de imagem de uma boca falante em celular e um efeito estroboscópico. O piscar incessante da luz que sai da plateia, em meio ao espaço esfumaçado e a fala acelerada, taquifônica, gera um efeito cinematográfico. Aliás, o texto lembra muito um roteiro. Nas entrelinhas, há imagens muito bem desenhadas. Sugeridas em menções, em estilos de textos explorados nas citações e mais modelos e arquétipos literatos diversos. Até o teatro do absurdo veio ao ambiente. Quando se diz tudo, dizendo nada com nada. Frases aparentemente soltas, desconexas, dadaístas, acabam por se conectar em um padrão cognoscível autêntico. Único. Tem uma proposta.

Vitorino em cena 2-Foto: Lupa1

A interpretação disruptiva do personagem, que vai acessando as prateleiras de uma memória subversiva, sem um gatilho específico revela o poliédrico docente. Perturbado pelas lembranças, o ator experiente, com 28 anos de palco, destila suas gradações. De uma voz segura na chegada, firme, podemos ver e ouvir uma versão pastosa, do idioma dos ébrios. Gaguejos e gagues inserem a proximidade. A língua ágil também escorrega, traída pelos eflúvios do àlcool. Tudo dá um tom de envolvente verdade. Cremos no que vemos em nossa frente, mesmo sabendo que é teatro. Ao romper a quarta parede, invadiu a intimidade da audiência. A direção é clara em seu objetivo alcançado.

Antes da cena, uma folha A4 é oferecida a quem assiste. Nela, o título em negrito da montagem e logo abaixo, com a mesma fonte e tamanho, “Texto para Plateia”, em caixa alta. Fiquei pensando que seria para acompanhar alguma coisa. Li antes. Pensei que poderia ser falado pelo ator. O que vem é melhor. Já vestido com uma camisa do mesmo material da bermuda, com mangas e no peito um fecho de um tipo bem antigo. Um fio grosso é entremeado em ilhoses de lado a lado, até a altura do esterno. O figurino sugere algo medieval. Rodrigues senta na beira do palco e passa à nota qualitativa dos alunos, nós, que assistimos.

O texto saltou do papel, foi à cena, e agora dialoga nas mãos da plateia com o personagem dando aula. O ciclo fechou. A mensagem circulou sem ruído. Ao tempo em que diz, propõe, já que uma leitura é incentivada. O professor quer interação. Citando as pessoas pelo nome, como se estivesse em seu mister, vai motivando o “alunado” a interpretar o que foi lido. Feedback. Réplicas. Tréplicas. Cada vez é de um jeito. Cada leitor vai trazer um tom. Cada um vai enxergar e trazer pontos de vistas só seus. Os que participam, contracenando com o solista, sem cerimônias vão compondo os seus próprios personagens.

Diante do contexto cênico desenvolvido, talvez monólogo não caiba numa descrição do espetáculo. Há um volume considerável de coadjuvantes, que complementam a obra aberta de Nathan Sousa com o improviso de cada apresentação. Com novos atores e atrizes a cada encenação, a peça achega-se com aquilo que temos em comum. Através da palavra, seus hiatos, seus efeitos, seus defeitos, sua beleza, que nem sempre põe mesa, mas abre o apetite. Nós que podemos falar, somos levados a um reino de oportunidades maravilhosas. Viajando sem sair do lugar. Nós que podemos ouvir, somos embarcados em mundos vastos e inéditos, com os olhos fechados podemos engendrar situações com riqueza de detalhes.

O exercício da atuação é biográfica. O ator pode ser o personagem. O personagem pode ser o ator. Eles atuam juntos muitas vezes. Vitorino, que é mestre da rede pública do Maranhão, é formado em Letras, com especialização. Está mergulhado na conclusão de sua tese de mestrado, que é sobre a cena piauiense. Fui um dos entrevistados de sua coleta de testemunhos. Conversamos um bocado sobre o assunto. Oficialmente. Em off, mais ainda. VR mergulhou numa das montagens mais emblemáticas do teatro moderno piauiense. Em meados dos anos 90, o Grupo Harém de Teatro estreou “O Auto do Lampião no Além”, de José Gomes Campos. O mesmo da escola de teatro. Ele ainda era vivo. Assistiu inúmeras vezes. Eu atuei como Lampião.

Vitorino em cena 3-Foto: Lupa1

A primeira vez que assisti Vitorino em cena foi em “Barrela”, de Plínio Marcos, com direção e quase tudo mais de composição técnica do brilhante Adalmir Miranda, que também atuava. Rodrigues fez o Portuga, que com seus gritos, abria e mantinha a tensão da cena. Quem conhece o texto, sabe que é um dos personagens mais desafiadores e também mais ricos em possibilidades. Infinitas. Na cena de ontem, o ator relembrou de diversos personagens e espetáculos que participou. Seu legado de construções cenográficas abriu um portal de reconhecimento muito bem firmado em trabalho intenso, onde confabula com várias vertentes de sua pesquisa sem fim do que pode e deve ser lido e do que pode ter ido ao palco. Um digno operário do tablado, que assim como o professor, não sonha com a fortuna, em primeiro plano. Mesmo que mereça, certamente não está em sua lista de prioridades e ambições. A poesia pode ser mais locupletante e compensadora.

“Vini, vidi, vici”, de Júlio César. Gastando o meu tradutor de latim, a antológica “Vim, vi e venci” foi reconstruída. O professor disse e repetiu várias vezes: “Vim, vi e perdi”. Mas dito sem lamento. Não soa com tristeza. Há uma leve ironia. Ganhar o quê? Vencer o quê? Perder o quê? Há sábios que defendem que não se perde, mesmo quando não se ganha. O aprendizado é lucro, no mínimo. Então não há derrotas. Não para sempre. Assim como as variações de amor, ódio e humor oriundos da sala de aula, na próxima cena, na próxima disciplina, tudo pode mudar. Ou não.

As soluções de luz com lanternas, pequenas, grandes, do palco, da plateia, garantiram uma simplicidade genial. O diretor Wellington Silva assinou a obra com consciência do que estava fazendo. A trinca (provavelmente é mais), referindo-me ao autor, ator e diretor edificaram aquilo que a presidente do Sindicato dos Artistas do Piauí chama “um espetáculo que atraia o público”. Sim. É uma peça atraente. Infelizmente, o público não sabe. Talvez eu colabore um pouquinho com estas linhas e motive você que ainda não viu a prestigiar a arte mafrense. Eles voltam a encenar na próxima quarta-feira, 24, no teatro Torquato Neto, na Rua Álvaro Mendes, Centro da capital de Conselheiro Saraiva. Entradas a 30 reais a inteira e meia, a metade, óbvio.

Do afortunado texto, fiquei pensando noutro personagem que é citado, mas não vem à cena. Vou trazê-la à luz, pois creio que já posso concluir. Embora pudesse dizer muito mais. Fica como estímulo ao próximo que for assistir. Invoco Constância, a secretária do mestre, que diria com sua formidável presença de espírito: “Dexe kéto!”. Encerro meio enigmático, com o trecho da fala do professor atormentado: “não é um acerto de contas com a vida. É uma declaração de amor (quem diria) que normalmente nos escapa para ser dita em poesia”.

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