MEDUNA: Cínthia Lages escreveu e dirigiu o melhor filme piauiense de 2024
Documentarista foi em busca das fontes primárias, mergulhando por dois anos num universo complexo e misterioso, como os axiomas que compõem o cérebro.
Por William Tito
Meus sentidos levaram-me a momentos de alegria, reflexão e ao deleite do contato com a arte no ano da Graça de 2024. Porque é para isso que ela serve. Entre outras coisas. Nós precisamos muito mais de episódios que fortaleçam a nossa existência. Os bens culturais, ampliando o espectro do que nos sensibiliza, são a matéria-prima que nos move. Até quando a gente não tem consciência. Vai cumprindo sua sina, que é nos colocar em movimento.
A expressividade é da natureza de todo ser humano. Nós precisamos nos comunicar. Nossos ancestrais deixaram as mensagens pictóricas nas paredes que encontraram. Fizeram suas tintas e publicizaram o que viam com corantes nas grandes pedras, grutas e cavernas. A arqueologia não dá conta de catalogar o que já está às claras. E muito mais há a descobrir. O ser humano é a própria motivação de registros que nos representa. O encanto se decanta em muitas linguagens.
Formas e formatos, até disformes, mas com seus informes, nos levam a encontros necessários para manter a sensação do fascínio de existir sempre pulsante. É combustível. A arte impulsiona muita gente. Muita gente mesmo. Todos os anos. E não falo de quem faz ou quem produz. Nem de quem colabora na área técnica. Falo de quem entende que os bens artístico-culturais, de uma forma ampla, são o tempero mestre de nossa vivência.
Eu sou um deles. É item de primeira necessidade na minha cesta básica. Por meio da arte tenho acesso ao reino dos sentimentos mais finos, quando nos tocam profundamente. Normalmente escorre uma lágrima recrutada dos arquivos especiais quando sou confrontado com a verdadeira arte. Ela me atinge em cheio. Das muitas linguagens que normalmente sou consumidor, selecionei algumas que brilharam.
Também criei algumas categorias de artistas que ferveram a cena, na minha opinião. E uma deferência especial, no final do texto. Um fato histórico que pouca gente se deu conta da importância. Nada pretensioso. Não quero fazer meramente lista. Mas indico tudo o que vem a seguir. É um intento colaborativo de pautar e “louvar o que bem merece”, como diz o Anjo Torto. Por sinal, tem outro texto a ser publicado, enfocando os 80 anos de nascimento de Torquato Neto. Para publicação em breve. Vamos começar pelo audiovisual. O próximo é sobre teatro.
Telona sã e salva
O cinema piauiense está prometendo muito, com os poderosos aportes financeiros que recebeu via Lei Paulo Gustavo, deve escoar uma enxurrada de filmes curtas, médias e longas, que estavam represados. A maior parte da verba milionária é conduzida às minorias mais vulneráveis, que são a prioridade das políticas públicas do audiovisual brasileiro. Se entregar 50% já será muita coisa. Dentro deste universo, se 10% for realmente consistente, será um enorme avanço.
A jornalista e escritora Cínthia Lages, repórter com vasta experiência na cobertura de todo tipo de pauta, carrega há muitos anos a tocha da qualidade de suas matérias. Tudo sai com esmero. Tornou-se uma griffe pelo rigor na entrega. Acabamento impecável. Ela sabe fazer brilhar. Veterana dos vídeos jornalísticos, atravessou o período de ouro da revolução tecnológica com a fluência que lhe caracteriza.
Sabe tudo de audiovisual. Sabe contar muito bem uma história, com seu texto irretocável e requintes de poesia. Um perfeccionismo que não cansa de se aperfeiçoar. Portanto, habilitada por sua trajetória para se lançar na empreitada de trazer a memória de um dos espaços mais emblemáticos da sociedade piauiense. Em tempos que a saúde mental está em alta, com tratamentos diversos e humanizados, o contraste com as terapias que incluíam eletrochoques, choca o coração mais empedrado. É forte. Não há como sair incólume. Vai mexer quem for ver.
“De médico e louco...
“Meduna, Quem sabe onde está a Loucura?”, em sua pré-estreia, em 14 de junho de 2024, lotou a sala exibidora, no Sesc Cajuína. E ficou com mais de 900 inscritos na lista de espera. Tive que dar os meus pulos para conseguir o ingresso. Estava numa grande expectativa, que foi superada rapidamente. O Sanatório Meduna fez 70 anos de sua inauguração, em 2024. Desativado desde 2010, recebeu mais de 100 mil pacientes durante o seu funcionamento.
Meduna é uma homenagem ao neuropsiquiatra húngaro, Ladislas Joseph von Meduna, que criou o eletrochoque. O tratamento consistia na indução repetida de convulsões para várias patologias psiquiátricas. Era o que tinha de revolucionário à época. O sanatório homônimo instalado em Teresina acompanhava a “modernidade”, atraindo pacientes que vinham de todas as regiões do país. O criador, médico psiquiatra Clidenor de Freitas Santos, era referência nacional em seu tempo.
A documentarista foi em busca das fontes primárias, mergulhando por dois anos num universo complexo e misterioso, como os axiomas que compõem o cérebro humano. Os depoimentos da equipe clínica, pacientes e seus parentes, revelaram cicatrizes que permanecem nos que conheceram a realidade por trás da arquitetura dos arcos espanhóis do Meduna. É surpreendente saber que alguns personagens sobreviveram.
Na abordagem delicada, no levantamento dos muitos lados da mesma moeda, Cínthia trouxe uma visão profunda sem apontar vilões. Mas parte das vítimas se mostraram. Uma parte significativa dos cidadãos de Teresina, quem mantém altos índices de suicídios, passaram pelos corredores, que chegam a dar frio na espinha em alguns. Outros afirmam que é um local energeticamente carregado. Habitado por vultos que não são desta dimensão.
O filme foi exibido algumas vezes, mas não o suficiente para atender a demanda. As sessões estão sempre super lotadas. As pessoas não se incomodam em sentar no chão. Já vi duas vezes. E quero ver mais. São muitos detalhes que despertam mais curiosidades. Um grande trabalho de pesquisa. Edição enxuta de Vini Luz, que também assina Fotografia e Colorização. O ritmo marcante, que não deixa a peteca cair. A audiência nem pisca.
A produção é de Amália Chaves e a trilha é de Iago Guimarães. Com mais 8 minutos, entraria à categoria dos longas. Perguntei à realizadora se tinha material para fechar o longa. Ela falou que sim, mas não entrou em detalhes. Quem sabe não tem uma continuação. Meduna é o grande filme piauiense de 2024 de todas as modalidades audiovisuais, na minha opinião.
É o filme disputado pelas salas exibidoras, pois é garantia de casa cheia. Concorrido para entrar na grade de programação dos canais que privilegiam os conteúdos de qualidade impecável. A TV Câmara vai exibir o belo trabalho. Eventos que envolvem profissionais da área de saúde mental disputam o filme para abrir sua agenda. A jornalista e sua equipe são convidados para palestrar sobre o filme. Várias cidades pedem que o audiovisual seja exibido. O que prova que pode ser elaborado um circuito de circulação de bens culturais audiovisuais.
Daria mais um texto palavroso se a gente fosse tratar o conteúdo esmiuçadamente. Mas o mistério vai fazer melhor para motivar você que chegou até aqui. Se eu tivesse alguma dúvida, não teria escrito o textão acima. Meduna entra para a galeria dos melhores filmes piauienses e a saúde mental brasileira ganhou um capítulo videografado de sua história de grande valor. A pergunta, que complementa como subtítulo, continua sem resposta. E eu já vi duas vezes: “Quem sabe onde está a loucura?”
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