Análise da Violência Policial e Provas no Brasil (Set-Dez 2024)
Examinando a Eficácia e Legalidade da Produção de Provas no Sistema Penal Brasileiro.
Vamos realizar uma análise técnica sobre a violência policial no Brasil nos últimos três meses, até dezembro de 2024, com o objetivo de entender melhor o propósito do nosso sistema de persecução criminal.
Nosso foco é verificar se o sistema está verdadeiramente empenhado em aplicar a punição, o jus puniendi, após o devido processo legal, ou se a intenção é aplicar a punição de forma arbitrária, em claro desprezo ao sistema de persecução penal brasileiro e ao Poder Judiciário.
É crucial compreender que, quando uma pessoa é acusada criminalmente de um fato, há somente uma hipótese criminal. Por mais dolorosas que sejam as inclusões das capitulações jurídicas em uma acusação criminal – exemplo: organização criminosa, lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e corrupção – isso não quer dizer que a pessoa cometeu alguma infração ou se cometeu exatamente aquele crime proposto pela acusação, pois, conforme salientei, o acusado se defende dos fatos e não da capitulação jurídica proposta pelo Ministério Público. Consequentemente, o juiz sentencia com base nos fatos e tem o livre arbítrio para modificar a capitulação jurídica, podendo tanto condenar por outro crime quanto absolver o acusado por uma capitulação jurídica distinta daquela proposta pela acusação.
Retornando à análise da violência policial nos últimos três meses em nosso País, é crucial examinar o processo de produção de provas. Quando há um vício na etapa que antecede o envio da prova ao Poder Judiciário, isto é, quando o Estado produz uma prova por meio de abuso de autoridade, extorsão ou ameaça, por exemplo, temos um problema grave. O Estado não pode produzir provas ilícitas. Se isso ocorre, toda a cadeia probatória é comprometida, o que poderá ocasionar a nulidade da prova que embasou uma eventual acusação criminal, levando à absolvição do suposto infrator.
Analisando casos recentes e chocantes de violência policial, como o policial que jogou uma pessoa da ponte, o que plantou munições para incriminar um suposto infrator, ou a abordagem da Polícia Rodoviária Federal que resultou em tiros à queima-roupa contra pessoas inocentes, percebemos que nosso sistema de persecução criminal está falhando, pois essas supostas provas produzidas pelo Estado não têm valor suficiente para uma condenação criminal, pois foram colhidas com a prática de outra infração penal.
É fundamental entender que o destinatário final da prova penal é o Poder Judiciário, não a polícia. O objetivo da polícia, em linhas gerais, é produzir uma prova penal capaz de sustentar uma eventual acusação criminal, e para que isso seja possível é necessário que sejam observadas regras legais que protegem a pessoa de abusos.
O caso em investigação pela Polícia Federal e pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, que analisa a possível corrupção na Polícia Civil de São Paulo, ilustra um triste episódio de violência policial. Caso as suspeitas de crimes por parte desses servidores públicos sejam comprovadas e as provas por eles obtidas tenham servido como base para condenações criminais, outras pessoas que foram alvo dessas investigações poderão pedir a revisão de suas sentenças. Isso ocorre porque a prova apresentada pelo Estado deve ser isenta de falhas na cadeia de custódia. Quando um policial emprega métodos ilegais para assegurar, por exemplo, uma confissão, tal prova pode ser anulada. As consequências materiais e morais para o Estado são imensuráveis. Se for demonstrado que o departamento de investigação operava fora das normas, os indivíduos investigados por esses policiais poderão solicitar a revisão de seus casos, conforme estipulado no inciso III do artigo 621 do Código de Processo Penal.
Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida:
III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena.
De acordo com o artigo 621, inciso III do Código de Processo Penal, quando uma eventual ação penal for instaurada e o processo se tornar público, as novas evidências criminais poderão subsidiar a revisão de julgamentos de casos previamente investigados pelos policiais envolvidos na apuração, conforme exigido pelo dispositivo legal.
A polícia está presente para produzir uma prova penal, não para eliminar um possível infrator ou fazer justiça sem o devido processo legal. A prisão, quando necessária, deve ser feita com educação e razoabilidade. O policial deve prender a pessoa e entregá-la à custódia do Estado, informando a Justiça sobre a prisão efetuada. A partir desse momento, cabe ao Poder Judiciário dar a última palavra.
Quando um policial comete uma infração para cumprir uma finalidade judicial ou investigativa, ele está criando uma prova estatal extremamente falha. Isso explica por que os tribunais superiores anulam grandes operações policiais, mesmo envolvendo crimes graves, ao constatarem que a produção da prova originária foi feita em desacordo com o devido sistema de produção de provas.
Confira trechos da ementa do HC n. 768.440/SP, relatado pelo Ministro Rogerio Schietti Cruz, da Sexta Turma, julgado em 20/8/2024, onde foi constatado vício na produção da prova originária que levou à absolvição de uma pessoa acusada de tráfico de drogas:
“8. Trata-se, portanto, de abandonar a cômoda e antiga prática de atribuir caráter quase inquestionável a depoimentos prestados por testemunhas policiais, como se fossem absolutamente imunes à possibilidade de desviar-se da verdade; do contrário, deve-se submetê-los a cuidadosa análise de coerência ? interna e externa ?, verossimilhança e consonância com as demais provas dos autos, conforme decidido pela Terceira Seção deste Superior Tribunal no HC n. 877.943/MS (Rel. Ministro Rogerio Schietti, DJe 14/5/2024). Para isso, é fundamental repensar práticas usuais e inadequadas que dificultam o exercício desse especial escrutínio sobre o testemunho policial, tais como o frequente "copia e cola" dos depoimentos dos agentes no inquérito e a leitura integral do boletim de ocorrência para os policiais em juízo a fim de que apenas confirmem o seu teor, em verdadeiro simulacro de depoimento.”
O Poder Judiciário é severo, mas não tolera ilegalidade na obtenção da prova. Se não pensarmos que o sistema de persecução criminal precisa trabalhar em conjunto e que a violência policial contamina a prova penal, continuaremos enfrentando problemas. O Estado não pode praticar uma infração criminal para cumprir uma ordem legal. Um fato subsequente não justifica o fato antecedente no direito penal. Se houver contaminação na prova originária, as provas dela decorrentes são declaradas ilícitas por derivação, seguindo a teoria dos frutos da árvore envenenada.
Se não considerarmos que a violência policial contamina a prova judiciária, todo o sistema sai prejudicado. A única prova penal efetivamente válida é aquela produzida de forma legal pelo Estado. Quando essa prova chega ao Poder Judiciário e é constatado que houve ilegalidade em sua obtenção, ela é declarada nula.
É crucial fortalecer as corregedorias das polícias e punir os maus policiais, reconhecendo que a grande maioria dos policiais é composta por profissionais corretos, estudiosos e educados. A violência policial é uma exceção, mas não pode ser ignorada quando analisamos o objetivo da prova criminal, que é, indubitavelmente, a condenação pelo Poder Judiciário. Quando existe dúvida entre a palavra da vítima e a palavra do Estado, vigora o princípio do in dubio pro reo, reforçando a necessidade de se utilizar as câmeras corporais para a validade da prova.
A crítica não se dirige à utilização da força policial de maneira progressiva, respeitosa e inteligente, mas sim à utilização imediata e desproporcional da força para cumprir uma ordem ou responder a um ato ilícito. O Estado não pode praticar outra infração criminal, seja uma lesão corporal, um abuso de autoridade, uma extorsão, uma violência física ou psicológica, para cumprir uma ordem legal.
Em conclusão, se não refletirmos sobre como a violência policial gera ineficácia na produção da prova, continuaremos a ver casos em que provas importantes são declaradas ilícitas, prejudicando todo o processo de persecução criminal.
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