Lugar de Fala

WILLIAN TITO:Poesia percussiva de Élio Ferreira é de ferro que não dá ferrugem

Louco, maluco, doido, era o mínimo dos impropérios aferidos a ele e a nós, que fazíamos parte de sua banda, “Os Contra-lei”.

12 de abril de 2024 às 19:26
7 min de leitura

Abro as redes sociais e vejo-as repletas de manifestações de carinho e reconhecimento ao artista, professor, capoeirista, escritor, Élio Ferreira de Souza. Nem sempre foi assim. Lá no início da década de 90, quando ele era um ilustre desconhecido, sua obra soava, ressoava, mas tinha pouca repercussão. Não era para menos. Olha esse. Um dos mais conhecidos.

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OContra-lei eOutrosPoemas(1997), página34.



Elio, contra-lei-Foto: Reprodução

Louco, maluco, doido, era o mínimo dos impropérios aferidos a ele e a nós, que fazíamos parte de sua banda, “Os Contra-lei”. Pois é. Fiz parte da banda de rap (pela falta de classificação mais assertiva) que dava sustentação à performance do mestre. Uma bela tarde, cheguei junto com o Hagamenon Júnior, que estava aprendendo a tocar bateria e percussão, na casa do Cláudio Monteiro Alvarado. Eu era aspirante de vocalista.

Nosso maestro, tocando um violão, que era para ser melódico, tornou-se percussivo. Cláudio era um estudioso violonista. Daqueles que brincam com as cordas, mudando a afinação e tocando mesmo durante a execução de uma música. Apresentava-se com vários artistas da música piauiense. Júnior, com a sua inseparável timba, ia percutindo o que o poeta ditava em uma ampla sala. Salvo engano, a residência estava localizada no bairro Morada do Sol, na Zona Leste da capital piauiense. Eu entrava na performance vocal e de expressão corporal, junto com o poeta. Todos vestidos de preto, com a cara pintada. Não era algo com um formato com estética bem resolvida. Era meio caótico e tosco. Porém, funcionava. Ninguém passava batido àquela exibição inusitada.

Elio, o contra-lei II-Foto: reprodução

Quando ele surgia com sua capa preta a la Torquato Neto, empunhando um megafone, sua voz rouca retinia. Fizemos várias apresentações itinerantes. Saindo da igreja São Benedito, ele convidava as pessoas em situação de rua, inclusive os meninos, que seguiam em cortejo pelo Centro, que naquela época era lotado de gente. Geralmente encerrando na frente do Theatro 4 de Setembro. Certa vez, no lançamento do livro “O Contra-lei”, 1994, salvo engano, ele montou um farto café da manhã, com muitas frutas, em mesa na frente do Theatro. Depois da performance, os residentes das ruas do Centro, os mais vulneráveis, fizeram o limpa. Ficaram apenas restos e cascas de melões, melancias e mamões.

A poesia de Ferreira evoluiu. Saindo da fase do ferro, que repetia sílabas, que usava a percussão vocal de seus fonemas, gerando a aliteração que imitava a batida do martelo sobre a bigorna, moldando a palavra bruta, lapidando as letras e criando a sua poemática a base da transformação alquímica metalizada. Élio tirou leite de ferro, readaptando o adágio popular para a construção literária.

Elio, o contra-lei III-Foto: reprodução

Seu pai, era um mestre ferreiro e bombeiro hidráulico, que mantinha a sua própria oficina. Aos 9 anos, o florianense iniciou seu aprendizado em malhar o ferro. Quantos tem-tem soaram nos ouvidos do poeta antes de construir sua poesia? Até os 20 anos, seguiu na oficina, atuando ao lado do pai como aprendiz. Nada é à toa. O livro “Poemartelos”, 1986, marcou o início da trajetória da poesia onomatopaica, quando deu vida à memória afetiva, decantando no papel o que ouviu a vida toda. O martelo ecoava no juízo do poeta.

O tempo passou. Élio começou a obter o reconhecimento catedrático, e isso chancelou sua importância no circuito artístico-cultural de Teresina. Passando das performances de rua, subiu ao palco do bar Elis Regina, de João Vasconcelos, que ficava na esquina das ruas David Caldas e Félix Pacheco, por trás de um belo palacete que abrigava a UBE-PI - União Brasileira de Escritores do Piauí. Sempre me pergunto como um espaço tão minúsculo cabia tanta arte.

Houve um período áureo de efervescência cultural, que veio dos anos 80/90 e desaguou no início dos anos 2000. Naquele período, todo dia da semana tinha alguma atividade promovida pela Fundac (antes da Secult, a entidade que representava a Cultura do Piauí funcionava como Fudação e ainda englobava o Esporte). Uma delas, que apresentava-se com regularidade mensal, era a “Roda de Poesia e Tambores”. Daí surgiram muitos poetas. Outros iam recitar suas criações. Havia poetas homenageados. Eu mesmo performei várias vezes. Em uma delas, fiz a interpretação da obra do poeta Hardi Filho, de saudosa memória. Um craque dos sonetos.

A passagem de Élio, que trazia a espada de Ogum com leveza, mostrou o lado sereno do orixá. Nunca vi o poeta destemperado. Sempre sossegado. Equilibrado. Pacífico e apaziguador. O martelo moldou com carinho uma geração de poetas, homens e mulheres, que perderam a vergonha de dizer seus dizeres naquele palco mágico do Espaço Jornalista Osório Júnior, no Club dos Diários. Tudo obra do mestre que fez das pancadas no ferro o fenômeno que o tornou notório. Nós, que o conhecíamos de perto, nunca duvidamos.

Élio deixa um vácuo que dificilmente será ocupado com tamanha propriedade. O Iron Man do Médio Parnaíba não vestia uma armadura metalizada. Sua capa de cetim preto bailava ao sabor do vento, leve. Sua voz dizia o que a oficina da vida moldou em seu coração. O neuroatípico que foi xingado e enxovalhado no começo, tornou-se um emblema da poesia mafrense. Ferreira pendurou o martelo, mas a sua obra será mais conhecida a partir de agora e seguirá sem ferrugem para sempre. A magia está consumada. O ferro virou aço inoxidável. “Abracadabra. Abra. Abracadabra!”

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