Coluna Lugar de Fala

Willian Tito

Compositor Jorjão deixa canções eternizadas que abordam o profundo sentir com leveza

Riqueza das composições do poeta está no arrojo da forma despojada de falar com profundidade.

25 de dezembro de 2024 às 17:25
9 min de leitura

O amanhecer do Dia de Natal veio com o choque da notícia menos esperada. Nosso querido amigo Jorjão foi complementar a imensidão onde habitam os espíritos mais elevados. No panteão das deidades gregas, a mais velha e mais sábia das filhas de Zeus, é a Musa da Poesia. Calíope em sua beleza majestosa, é casta e reservada. Sorri a todos, mas nem a todos corresponde.

Músico Jorge Henrique, conhecido como Jorjão - Foto: Arquivo pessoal

Ela tem os seus. Os escolhidos de sua convivência escorregadia. A musa maior é acessível a quem quiser ter com ela. Porém nem todos conseguem se conectar com a profundidade. E se conseguem, não por muito tempo. A poesia é a que toca. Como música, que é de outra musa, Euterpe. As musas são independentes, mas quando se fundem, é a glória.

Jorge Henrique trouxe um elemento a mais em sua musicalidade fidelizada pelas musas. A temática e a abordagem inusitada em formatos muito cândidos, singelos, sutis. Uma mensagem tonificada pela simplicidade. Que é a fase mais complexa do acesso aos mistérios da linguagem. Como dizia Leonardo da Vinci, “A simplicidade é o máximo da sofisticação.”

A riqueza das composições do poeta está no arrojo da forma despojada de falar com profundidade motes delicados. Em compasso com a candura da forma, disse tudo como oráculos compartilhados gratuitamente a quem consultar seu cancioneiro. Onde ele se deu por inteiro. A vida toda esculpindo linhas melódicas com versos simples, que virou nome próprio. O artista acoplou ao seu e adotou o Jorjão Simples como nome artístico.

Repertório popular

Músico Jorge Henrique, conhecido como Jorjão - Foto: Arquivo pessoal

A simplicidade cristalizada de sua musicalidade nos premiou com dois hits que ainda vão tocar muito por aí, eternizando-o como compositor que teve a felicidade de cair na boca do povo. Primeiro “Intransigência”, que até quem nunca ouviu logo se reconhece em algum verso e canta sem cerimônia.

“Primeiro vem eu. Depois vem eu. Depois eu de novo”. O amor próprio também teve a chance de dar a dica verdadeira. Não podemos amar ninguém se não nos amarmos primeiro. Não se engane achando que o amor é um negar-se a si para privilegiar a quem se ama. Não é amor.

É o clássico exemplo das orientações da comissária de bordo. “Em caso de despressurização, máscaras de oxigênio cairão a sua frente. Coloque primeiro em você, depois nas crianças”. Algo mais ou menos assim. Indicando que a gente tem que ser responsável cuidando de si para poder cuidar de quem amamos. A mensagem do poeta resguardou a vida como deve ser.

“Quem disse que cabelo de nego é ruim, mentiu, mentiu, mentiu”. A poesia a serviço do antirracismo, trata com humor e leveza que só a poesia de Jorjão é capaz de alcançar assunto tão melindroso e necessário. Fugindo do panfletário, sua verve mergulhou na ironia, no deboche, na graça. Certamente fixa muito mais que um pito.

Mas tem muito mais. Onde a ternura foi garimpada e trouxe tesouros melódicos e suaves versos. Tão profundos como o filósofo que contempla a vida. Jorjão era acima de tudo mental. Absorvendo as nuances da vivência, com todos os seus extremos. Um pensador incansável. Permitindo-se explorar a mente para nos trazer as pedras preciosas lapidadas em arte até os últimos momentos.

Poesia do sentir

Músico Jorge Henrique, conhecido como Jorjão - Foto: Arquivo pessoal

A formação clássica do poeta é de um tempo que não vemos mais. Filosofia e Matemática. Hoje é cada vez mais raro ter quem comungue de humanas e exatas e transite com habilidade por ambas. O prazer em aprender ele aprendeu com os padres jesuítas. No Colégio São Francisco de Sales, o Diocesano, que está de frente à Praça Conselheiro Saraiva, foi de aluno a professor.

Foi onde conheci o jovem longilíneo, alto, com suas alpercatas estilosas, batas e calças de tecidos crus. E um acessório inseparável, que concluía o visual: uma bela bolsa de couro a tiracolo. Jorjão e sua vivacidade de olhos vivos e atentos era uma criatura atraente, com os astral sempre elevado, gentil e criativo. De uma convivência agradável, que todos gostavam de ter por perto.

Das canções que Jorjão nos deixa, grande parte está imersa ao conhecimento de poucos. Tem muita coisa linda. Tocante. Com a leveza e versatilidade peculiar de ir fundo, de cabeça, no sentir para poder trazer um parecer poético de quem viveu. Não de quem ouviu dizer. “Aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim”, dizia Sigmund Freud.

Da submissão aos sentimentos mais doridos à redenção de conquistas versejadas, tranduzindo-nos sem os sacrifícios de quem por lá passou. Não de passagem, mas ficado um tempo, “estagiado” no reino das emoções para nos entregar sublimada canção, oriunda de poema forjado na verdade do sentir, nos recônditos do coração. Mas sempre simples.

Mergulhador das emoções

Músico Jorge Henrique, conhecido como Jorjão - Foto: Arquivo pessoal

Nascido numa efeméride que justifica sua leveza, veio ao mundo no Dia das Crianças, 12 de outubro. Também dia da padroeira do Brasil. Com a criança interior acessada recorrentemente, Jorjão foi nas fontes abissais das sensações para nos ajudar a respirar melhor. Um oxigênio limpo a mais em nossas vidas, fortalecendo as células, os órgãos com a pureza do respirar profundo.

Encher o peito e estufar os alvéolos no mergulho livre, na apneia, para pescar a letra certa, a expressão mais apropriada, sem enfeites. Direta no endereço acima do diafragma, que regula a respiração. O poeta gastou suas inspirações para nos doar um fôlego por meio de sua música oxigenante. Sacrificou seus pulmões em prol de mais vida através da poesia e da música.

O corpo perecível ganha a sepultura e o descanso na cidade natal, que um dia já foi Natal. São muitos signos conexos, amplificando o entendimento que tudo está linkado. Neste Natal, o cristão encimado pela misericórdia, compaixão e caridade, princípios da remissão da alma, traduz em Jesus o perdão de todas as fragilidades. Jorjão no seu expirar derradeiro vem nos dizer que não precisa mais de oxigênio, pois sempre estará no ar com seus versos e canções.

Ao expirar pela última vez nesta manhã, consumou sua passagem como quem nasce. Indagando poeticamente se morrer também não pode ser o nascer. Dar a luz à vida eterna no dia de Natal é mais uma mensagem. O recado dado é que seu último fôlego o eterniza em nossos corações e cristaliza suas canções em nossa memória. Porque a arte é imortal.

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