Farmácias burlam lei no Piauí em meio à denúncias de omissão e conivência do CRF-PI
Em muitos casos, farmacêuticos apenas assinam, mas não ficam nas farmácias; denúncias levaram Procon do MP-PI a apurar situação.
A legislação brasileira exige, por meio das leis 5.991/1973 e 13.021/2014, a presença de profissionais farmacêuticos em todos os estabelecimentos farmacêuticos do país. Nesse tipo de estabelecimento estão farmácias, drogarias, laboratórios, distribuidoras de medicamentos, distribuidoras de material hospitalar e farmácias de manipulação. No entanto, a realidade é bem diferente do que a lei prega, e a aparente conivência de algumas instituições salta aos olhos.
No Piauí, existem cerca de 4 mil estabelecimentos farmacêuticos, a maioria farmácias e drogarias. Os dados são do Sindicato dos Farmacêuticos do Estado do Piauí (Sinfarpi).
Já o número de profissionais farmacêuticos é 3.900, ou seja, praticamente o mesmo do total de estabelecimentos. Então por que tantas farmácias, inclusive algumas unidades das grandes redes situadas na capital, não possuem um farmacêutico durante todo o seu horário de funcionamento, conforme manda a lei? Por que existem centenas de farmacêuticos desempregados no Piauí? As razões são diversas – e absurdas também.
Denúncias apuradas pelo Lupa1 dão conta de que alguns empresários burlam a legislação e em muitos casos contam com a conivência de órgãos que deveriam fiscalizar. Entre esses órgãos está o Conselho Regional de Farmácia (CRF). Em meio a tantas denúncias, está a de que muitos farmacêuticos apenas assinam como se ficassem nas farmácias, quando na verdade não estão lá durante o funcionamento. Em alguns casos, assinam para várias farmácias.
Uma das fontes ouvidas pela reportagem contou que o Conselho Regional de Farmácia não apenas sabe como se beneficia dessa prática, uma vez que, em alguns casos, ele mesmo indica o farmacêutico para os empresários. A prática estaria sendo usada, inclusive, com finalidade eleitoreira em seguidas eleições para a diretoria da instituição.
"Existem centenas de farmacêuticos desempregados, procurando espaço, e não acham porque tem uma panelinha que favorece, fazendo com que uma pessoa tenha até oito responsabilidades técnicas, enquanto outras não têm oportunidade de emprego", diz Ulisses Nogueira, presidente do Sindicato dos Farmacêuticos do Piauí.
TAC descumprido
Em 2016, depois de receber denúncias sobre a falta de farmacêuticos nas farmácias, o Programa Estadual de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon-PI), através do promotor Nivaldo Ribeiro, firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) assinado pelo Conselho Regional de Farmácia (CRF), Vigilância Sanitária de Teresina, Sindicato do Comércio Varejista de Produtos Farmacêuticos e pelo Sindicato dos Farmacêuticos do Piauí. A Vigilância Sanitária Estadual foi incluída no TAC, mas não assinou o documento.
No termo, ficou definido que as redes de farmácias e drogarias situadas em Teresina teriam que funcionar com assistência farmacêutica plena a partir do dia 1º de dezembro daquele mesmo ano, com presença de responsável técnico e/ou assistente farmacêutico, inscritos no Conselho Regional de Farmácia, resguardando no máximo duas horas para almoço.
Já as farmácias de pequeno porte teriam que se ajustar gradativamente. A partir de janeiro de 2017 teriam que ter certidão de regularidade com assistência farmacêutica por no mínimo seis horas. De janeiro de 2018 em diante deveriam possuir profissional presente por no mínimo seis horas diárias. Em 2020, seriam oito horas e em 2022 doze horas. A meta é até janeiro de 2026 todas terem assistência plena, independentemente do tamanho.
Porém, o Termo de Ajustamento de Conduta nunca foi cumprido integralmente. Em abril deste ano, uma nova denúncia, de nº 000102-005/2024, foi aberta no Procon do Ministério Público do Piauí (MP-PI) cobrando o cumprimento do TAC.
Fiscalizações do Procon
Na semana passada, o Procon-PI iniciou uma série de fiscalizações em farmácias, começando pelo interior do Estado. As fiscalizações serão intensificadas e vão abranger também a capital. No Procon, o Lupa1 apurou que os fatos denunciados procedem e que serão listados em um relatório que será enviado à Coordenação do órgão para adoção de providências.
De acordo com o Procon-PI, caso não haja regularização, deverá ser aplicada a multa prevista no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), bem como outras sanções previstas no Art. 56 do Código de Defesa do Consumidor.
Suspeitas e conflitos de interesse
As denúncias de conivência do Conselho Regional de Farmácia com a situação são reforçadas quando se nota ligações de membros da entidade com outros órgãos que deveriam fiscalizar, bem como ligação com uma grande rede de farmácia.
Luiz José de Oliveira Júnior foi presidente do CRF de 2018 a dezembro de 2023 e atualmente é conselheiro federal de Farmácia pelo estado do Piauí. Ao tempo em que exerce influência na entidade responsável por fiscalizar, ele é coordenador farmacêutico das Drogarias Globo, uma das maiores redes de farmácia em atuação no Piauí.
"Para você ter ideia, se um colega farmacêutico vai abrir uma pequena farmácia hoje, ele paga, além dos alvarás, a anuidade dele como farmacêutico e a taxa da farmácia para o Conselho. Já as Drogarias Globo pagam em cima do faturamento. Eles dizem que faturam pouco porque os medicamentos estão todos no Grupo Jorge Batista e são substituídos, e ela fica pagando a mesma taxa que uma pequena farmácia de bairro paga", conta o presidente do Sindicato dos Farmacêuticos.
O que diz Luiz Júnior
Procurado pelo Lupa1, Luiz Júnior preferiu apenas repassar o contato do atual presidente do CRF-PI para que ele falasse sobre a situação. Em relação aos questionamentos feitos pela reportagem, inclusive sobre a ligação que tem com as farmácias Globo e sobre as suspeitas de favorecimento do grupo, ele não quis responder.
O que diz o presidente do CRF-PI
Já Raulino Firmino, atual presidente do CRF, é coordenador na Diretoria de Assistência Farmacêutica da Secretaria de Saúde do Piauí (Sesapi), órgão do qual é servidor público concursado. Ao mesmo tempo, é responsável técnico pela Distribuidora de Medicamentos Saúde e Vida Ltda, que vende para os setores público e privado.
Procurado para responder sobre as denúncias de falta de fiscalização nas farmácias e conivência do CRF-PI com farmacêuticos que apenas "assinam", Raulino Firmino afirmou que estava em viagem para Brasília e disse que só fala sobre o assunto depois de uma audiência pública relacionada ao tema que será realizada no dia 12 no Procon.
Vigilância Estadual diz que não tem nada a ver
Em resposta ao Lupa1, a Vigilância Sanitária Estadual (Divisa-PI) justificou que não tem competência de fiscalização de farmácias e drogarias, pois fiscaliza apenas estabelecimentos de alta complexidade, ou seja, com alto risco sanitário. Na manifestação, a Divisa atribuiu à Vigilância Sanitária Municipal a competência para fiscalizar farmácias e drogarias.
A Divisa informou ainda que, embora tenha sido incluída no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) do Procon em 2016, se negou a assinar o documento por orientação da Secretaria de Saúde do Piauí (Sesapi), uma vez que não é responsável pelo licenciamento e fiscalização de farmácias e drogarias.
Vigilância Municipal também se exime
A direção da Gerência de Vigilância Sanitária de Teresina (Gevisa) jogou a responsabilidade para o Conselho Regional de Farmácia. "A competência fiscalizatória em relação à permanência do farmacêutico é do Conselho de Farmácia. A Gevisa fiscaliza as condições sanitárias e se há responsável técnico pelo estabelecimento", disse em nota.
Enquanto todos ficam nesse jogo de empurra pra cá, empurra lá, a lei segue sendo descumprida e o consumidor prejudicado.
Atualização às 8h50 de sexta-feira, 8 de junho de 2024.
Depois de manterem o silêncio ao serem procurados e se negarem a responder todos os questionamentos enviados pelo Lupa1, o presidente do CRF-PI Raulino Firmino e o conselheiro de Farmácia Luiz Júnior só decidiram se manifestar após a forte repercussão da matéria. Em uma nota enviada pela assessoria de imprensa do CRF-PI três dias após a publicação, a direção do Conselho nega as acusações e diz que o TAC firmado em 2026 vem sendo cumprido, o que é negado pelo próprio Procon. Confira a nota:
"Diante dos fatos noticiados em matéria intitulada "Farmácias burlam lei no Piauí em meio à denúncias de omissão e conivência do CRF-PI", publicada no dia 05 de junho de 2024, pelo portal Lupa1, o Conselho Regional de Farmácia do Piauí esclarece que, a quantidade de profissionais inscritos e ativos no órgão são atualmente de 2.904 e não 3.900. Destacamos também que as anuidades são definidas não pelo órgão regional, mas pelo Conselho Federal de Farmácia, seguindo as diretrizes da Lei 12.514/2011 (art. 6º), sendo que não houve reajuste nos últimos 5 anos.
O Conselho Regional de Farmácia ressalta que, o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da Assistência Farmacêutica em vigor no estado do Piauí, elaborado e assinado conjuntamente pelo Ministério Público do Estado do Piauí, através do promotor Nivaldo Ribeiro, CRF, Sindicato do Comércio Varejista de Produtos Farmacêuticos e Sindicato dos Farmacêuticos do Piauí, este último citado como fonte na reportagem, foi elaborado e implementado em 2016, tendo seu cronograma efetivamente executado de acordo com as etapas programadas nas cidades abrangidas pelo termo, não havendo descumprimento de nenhum tópico.
O setor de Fiscalização do CRF-PI, de forma independente e imparcial, segue suas atividades conforme o processo de atuação como rege a Resolução 700/2021 e o Plano Anual de Fiscalização 2024. Somente no corrente ano, já foram realizadas mais de 3.600 visitas em mais de 120 cidades do estado. Os dados estão disponíveis para consulta na sede do CRF, em Teresina.
Vale enfatizar que, o Conselho Regional de Farmácia tem como competência, fiscalizar o exercício da profissão farmacêutica, visitando estabelecimentos e exigindo a presença do profissional como requisita o TAC em vigor, não sendo de suas atribuições, quaisquer assuntos relacionados a arrecadação dos tributos estaduais e municipais, gestão financeira, controle da execução orçamentária e cartorária dos estabelecimentos farmacêuticos inscritos no órgão. A regulação para emissão de alvará sanitário para funcionamento de empresas do ramo farmacêutico seguem a Lei 5.991/1973, a qual obriga as vigilâncias sanitárias a fiscalizarem as questões regulatórias, incluindo averiguar a presença dos farmacêuticos para que as mesmas possam dispensar medicamentos em geral, assim como, para que os estabelecimentos possam comercializar fármacos controlados como antibióticos e psicotrópicos, sendo competência do agente sanitário interditar os estabelecimentos que estejam em desacordo com a legislação vigente.
Informamos que a ocupação de cargos de gestão da diretoria e no plenário do CRF é honorífico, sem remuneração, e não impeditiva de exercer funções em empresas e outras entidades públicas e privadas.
Por fim, reforçamos que este Conselho Regional de Farmácia preza pela transparência e idoneidade, mantendo informações sempre atualizadas no portal da transparência disponível em nosso site. Nos colocamos à disposição para esclarecer qualquer fato ou dúvida relacionados a rotina de funcionamento desta autarquia e seus setores."
Diretoria do CRF-PI