Direto ao Ponto

CEZAR FORTES: Confesso que vivi - Parte 2

A coluna do Cezar Fortes traz um linda crônica de Marcus Cremonese, que mora na Austrália.

19 de abril de 2023 às 09:20
5 min de leitura

Vi anteontem o documentário "Tempo de Resistência" na TV Brasil. O filme trata da luta armada. E esta me leva de volta ao assunto de ontem e minhas caídas na malha (ou armadilha?) da tal "segurança nacional".

"Tempo de Resistência" na TV Brasil.Reprodução

Ao chegar ao Piauí para trabalhar, logo de cara fiz amizade com um Sérgio. Trabalhávamos num grupo-tarefa criado para testar uma tese do antropólogo João Ribeiro a ser defendida em Harvard: "Um Modelo de Desenvolvimento Integral Participativo". Em suma, o João Ribeiro, inspirado em Claude Lévi-Strauss, via a comunidade como um universo, formado por sistemas sociais e seus subsistemas. À nossa equipe cabia identificar lideranças das comunidades carentes (todas, no Piauí de então) e treiná-las para criarem projetos que fossem levados aos seus representantes políticos, em vez daqueles vagos e comuns pedidos de pré-eleição.

A ligação com o Sérgio Polari de Alverga era tão próxima que eu, Beth, ele e sua parceira Margit resolvemos alugar uma casa grande em Teresina. Moramos nela por cerca de um ano. Acontece que Sérgio era irmão do Alex Polari de Alverga. Tendo participado da luta armada, Alex ainda estava preso pela ditadura, de porão em porão, sofrendo todo tipo de tortura, naquilo que virou sua vida por longos dez anos.

Ali por 1976 fui convidado pela Universidade Federal do Piauí para dar uma workshop de três dias sobre desenho e artes gráficas. Preparei tudo, quadros murais, slides (quem ainda se lembra disso?) e no dia e hora marcados fui para o campus. Na porta da sala de aula me esperava o secretário da faculdade. "O reitor quer falar com você", disse ele. Perguntei se poderia falar depois de terminada a aula, já que os alunos me esperavam na sala cheia. "Não, ele quer ver você agora". Larguei tudo e fui ver o reitor.

"Sua workshop está cancelada pois consta que você tem um problema na área de segurança nacional". E nada mais me foi dito, como era de praxe.

Pirei. Como vou saber o quê está rolando? Por ter me tornado amigo do chefe da SUDENE, um mineiro, e do secretário de planejamento, um cearense, acabei descobrindo a "lebre". A unidade do Exército em Teresina recebera a denúncia de que nas visitas aos bairros carentes eu levava maconha para "abrir" a cabeça dos líderes. E o Sérgio, como se fosse o irmão, estava enfiando comunismo na cabeça deles. Pirei mais ainda. Mas tive calma bastante para pedir uma audiência com o comandante. Cinco ou seis tentativas depois consegui a tal audiência. Beth foi comigo. O coronel disse que eu havia sido investigado, de fato, mas nada foi achado contra mim. Podia voltar à universidade etc.

Costumo dizer que a minha estada no Piauí foi talvez o período mais feliz da minha vida. Claro, pela enorme distância geográfica e a mídia vagarosa da época, quase nada da ditadura "do sul" chegava até lá, dizíamos. A riqueza da cultura era a minha alienação favorita: vaquejada, bumba-meu-boi, reisado etc. No entanto não longe dali rolava a guerrilha do Araguaia, mencionada brevemente no filme de hoje. Dos 68 membros executados, o cearense Bergson Gurjão Farias foi o primeiro. Ferido a tiros de metralhadora foi morto a golpes de baioneta. Não o conheci pessoalmente mas convivemos com a irmã dele, Ielnia (presa em Ibiuna e torturada em Recife). Ielnia e o marido Lauren vivem hoje na Flórida e a nossa amizade dura até hoje.

Este filme também veio colocar mais umas gotas de querosene na minha lamparina, aquela que clareia lances distantes de um Brasil que deixei faz tempo...

OBS: o artigo acima foi redigido pelo meu amigo Marcus Cremonese (Rylstone, NSW, Austrália).

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