Quem criou o Bolo da Misericórdia? Receitas de SP revelam que nome já era usado em 2019
Imagens do restaurante Sertó, em São Paulo, mostram que o “Bolo Misericórdia” já era servido com nome e estética similares desde 2019.
O “Bolo da Misericórdia” virou um fenômeno pop. Com seus 20 quilos de massa, seis camadas de recheio e uma avalanche de calda escura derramada com requinte sobre o prato, a sobremesa criada por David Sousa em Teresina conquistou o país em 2023. A fama foi tanta que ele virou celebridade local, deu entrevistas, abriu loja própria e emocionou seguidores com sua história de superação.
Bolo da Misericórdia - Foto: Reprodução/ Vogue
Mas uma nova investigação do Lupa1 coloca essa narrativa sob suspeita.
Afinal, quem criou o Bolo da Misericórdia?
O que muitos não sabiam — até agora — é que o mesmo nome, o mesmo estilo visual e a mesma proposta gastronômica já existiam quatro anos antes em São Paulo. E com ampla documentação. O restaurante Sertó, localizado na região central da capital paulista, já publicava fotos do seu “bolo Misericórdia” desde 2019. O doce é idêntico ao viralizado no Piauí: fatia generosa, calda escorrendo de um bule metálico e apresentação rústica.
Em postagens feitas entre 2019 e 2021, o Sertó chamava o doce de:
“Misericórdia! Já provou o bolo de chocolate do Sertó? Vale cada centavo e caloria.”
(Instagram, 9 de julho de 2019)
“Quem pedir os pratos no jantar ganha uma amostra do bolo Misericórdia.”
(Instagram, 27 de julho de 2020)
“O bolo Misericórdia é o preferido de todos os nossos clientes.”
(Instagram, 20 de setembro de 2021)
Além disso, o nome “Bolo Misericórdia” foi mencionado por influenciadores gastronômicos, como @vinipavin, que afirmou:
“Perdi a conta de quantas vezes me marcaram no bolo misericórdia do Sertó.”
(Instagram, janeiro de 2024)
A própria Vogue Brasil destacou a sobremesa em março de 2024, ao listá-la como uma das mais icônicas de São Paulo, em um roteiro de doces que elevam o chocolate a outro nível.
E no Piauí?
A versão piauiense da história, amplamente divulgada, afirma que o nome “Misericórdia” surgiu de forma espontânea, com clientes exclamando diante da exuberância da receita. O problema é que o mesmo relato aparece em São Paulo, anos antes. O mesmo tipo de calda. O mesmo bule. O mesmo espanto. A mesma “misericórdia”.
Até o prato de louça branca com detalhe vermelho é igual.
Inspiração ou apropriação?
A reportagem do Lupa1 não nega o talento de David Sousa nem sua capacidade de transformar uma sobremesa em símbolo afetivo. Mas a evidência levantada expõe um fato duro: a autoria do nome e do conceito do “Bolo Misericórdia” não é inédita. E muito menos exclusiva.
Quando o hype atropela a origem
A internet tem o poder de consagrar, mas também de apagar histórias anteriores. No caso do Bolo da Misericórdia, parece que o sucesso no Piauí acabou eclipsando o pioneirismo do Sertó, que já carregava esse nome e conceito anos antes.
Em tempos em que autenticidade é moeda valiosa, talvez seja hora de reavaliar quem realmente merece o crédito por essa iguaria que conquistou o Brasil — uma colherada de cada vez.
Registro em dúvida: o “NCL 1230” citado não existe oficialmente
Embora o criador do “Bolo da Misericórdia” afirme nas redes sociais que a marca está registrada sob o código “NCL 1230”, uma verificação no banco de dados do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) mostra que esse número não corresponde a nenhuma das 45 classes previstas pela Classificação de Nice — sistema internacional utilizado para registro de marcas no Brasil. A categoria correta para produtos de confeitaria seria a Classe 30.
Em entrevista ao Estadão, o confeiteiro David Sousa declarou:
“Com a popularização do prato, quase perdi o direito de usar a marca que criei. Algumas confeitarias em Fortaleza e Manaus já tinham adotado o nome, mas consegui registrar a tempo. Todos têm direito a fazer sua receita, mas só eu posso vender o Bolo da Misericórdia.”
No entanto, até o momento, não há registro oficial da marca “Bolo da Misericórdia” concedido pelo INPI. O termo “1230” parece ser uma estilização pessoal, um erro de digitação ou até mesmo um código inventado sem valor legal. Essa inconsistência levanta dúvidas sobre a real proteção da marca e pode abrir margem para disputas comerciais, especialmente considerando que o nome já era usado informalmente por outros confeiteiros antes do fenômeno viral.
O portal Lupa1 permanece aberto para publicar a posição do confeiteiro caso ele deseje se manifestar oficialmente.