Municípios

Justiça “não consegue” intimar ex-prefeito de Lagoa do PI e ação por improbidade segue se arrastando

Cancelamentos de audiências por “não intimação” protegem políticos e perpetuam impunidade.

23 de junho de 2025 às 10:14
19 min de leitura

O sistema judiciário brasileiro enfrenta uma crise de credibilidade que se manifesta de forma particularmente evidente nos processos de improbidade administrativa envolvendo figuras políticas. Enquanto a Justiça demonstra notável eficiência para intimar um ex-presidente da República em leito de UTI quando há interesse político, os mesmos tribunais se mostram incapazes de notificar prefeitos e ex-prefeitos para audiências que tramitam há anos, sempre alegando a mesma justificativa: "não intimação dos réus".

Este fenômeno, que se repete sistematicamente em comarcas de todo o país, mas encontra terreno especialmente fértil no interior do Piauí, revela uma face perversa da Justiça brasileira: a aplicação seletiva da lei, onde a eficiência processual varia conforme o status social e político dos envolvidos. O caso emblemático do ex-prefeito de Lagoa do Piauí, Antônio Neto, e seu irmão Mauro César, acusados de usar maquinário público do PAC para construção de casa particular, ilustra perfeitamente essa distorção do sistema judicial.

Antônio Neto, ex-prefeito de Lagoa do PiauíReprodução do Facebook

O caso do ex-prefeito de Lagoa do Piauí

O município de Lagoa do Piauí oferece um exemplo paradigmático de como o sistema judicial pode ser manipulado para proteger figuras políticas locais através de alegações sistemáticas de impossibilidade de intimação. O caso envolve o ex-prefeito Antônio Neto e seu irmão Mauro César Soares Oliveira, acusados de usar maquinário do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para construção de casa particular no município de Monsenhor Gil.

As acusações, formalizadas em 2019 pelo Ministério Público do Piauí, incluem o uso indevido de equipamentos públicos destinados a obras de infraestrutura para transporte de material de construção para fins privados. O caso configura improbidade administrativa tipificada nos artigos 9, 10 e 11 da Lei 8.429/92, que tratam respectivamente de atos que causam enriquecimento ilícito, prejuízo ao erário e violação aos princípios da administração pública.

O que torna este caso particularmente revelador da seletividade judicial é o contraste entre a alegada impossibilidade de intimação nos processos de improbidade e a perfeita eficiência do sistema quando se trata de processos eleitorais. Antônio Neto foi candidato nas eleições de 2024, sendo intimado normalmente em todos os processos eleitorais, "sem nenhum óbice", como observa o denunciante. Esta discrepância expõe a natureza artificial das dificuldades alegadas nos processos de improbidade.

A tramitação do caso também ilustra a complexa teia de transferências de competência que pode ser utilizada para protelar indefinidamente o julgamento.

A família política e a perpetuação do poder

O caso de Lagoa do Piauí revela ainda outro aspecto perverso da proteção judicial a figuras políticas: a extensão dessa proteção aos familiares, criando verdadeiras dinastias políticas imunes à Justiça. Mauro César, irmão de Antônio Neto e também réu no processo de improbidade, é pai de Mauro Júnior, que chegou a ser prefeito do município. Esta configuração familiar no poder local torna ainda mais evidente a necessidade de uma Justiça eficaz e imparcial.

A perpetuação de famílias no poder através da proteção judicial não é fenômeno isolado. Pelo contrário, representa um padrão que se repete em municípios de todo o país, especialmente no interior, onde o poder local se concentra em poucas famílias que se alternam no comando da administração pública. A morosidade judicial em processos de improbidade funciona como um mecanismo de proteção dessas estruturas de poder, permitindo que políticos investigados continuem exercendo mandatos e se candidatando a novos cargos.

Mauro César, e Mauro JúnniorReprodução do Facebook

A legislação clara e as múltiplas formas de intimação

O Código de Processo Civil brasileiro estabelece de forma cristalina as diversas modalidades de intimação processual, não deixando margem para as alegações de impossibilidade que frequentemente paralisam processos de improbidade administrativa. O artigo 269 do CPC define intimação como "o ato pelo qual se dá ciência a alguém dos atos e termos do processo", sendo necessária quando o interessado não toma ciência diretamente dos atos processuais.

As formas de intimação previstas na legislação brasileira são múltiplas e abrangentes. A intimação por imprensa, regulamentada pelo artigo 272 do CPC, estabelece que "quando não realizadas por meio eletrônico, consideram-se feitas as intimações pela publicação dos atos no órgão oficial". Esta modalidade, por si só, já seria suficiente para garantir a validade da intimação na maioria dos casos, desde que contenha o nome das partes e advogados, sob pena de nulidade.

A intimação por correio, prevista no artigo 274 do CPC, oferece outra alternativa eficaz, sendo feita às partes, representantes legais, advogados e demais sujeitos do processo por correio ou diretamente pelo escrivão ou chefe de secretaria. A carta é remetida com aviso de recebimento, e o prazo começa a fluir da data de juntada aos autos. Quando esta modalidade se mostra frustrada, a legislação ainda prevê a intimação por mandado, realizada por oficial de justiça.

Mais relevante ainda para os casos de alegada impossibilidade de intimação é a previsão legal de modalidades excepcionais. O próprio CPC reconhece situações em que a intimação pode ser dificultada, mas estabelece mecanismos para superá-las. A intimação por edital, forma de citação ficta que se aperfeiçoa pela publicação de editais, é utilizada em situações excepcionais quando desconhecido ou incerto o lugar em que se encontrar o réu.

Decisão do último dia 29 de maio

Quando a Justiça quer, ela consegue

O episódio da intimação do ex-presidente Jair Bolsonaro em leito de UTI, ocorrido em 23 de abril de 2025, estabeleceu um precedente jurídico fundamental que desmonta qualquer alegação de impossibilidade de intimação por questões de saúde ou circunstâncias adversas. O caso demonstrou de forma inequívoca que, quando há vontade política e judicial, não existem obstáculos intransponíveis para a realização de intimações processuais.

Bolsonaro estava internado na UTI do Hospital DF Star, em Brasília, após uma cirurgia de 12 horas para desobstruir o intestino delgado, com recomendação médica para não receber visitas e sem previsão de alta. Mesmo assim, quando o ex-presidente participou de uma transmissão ao vivo pela internet direto do quarto do hospital, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, autorizou imediatamente a intimação, considerando que a live "demonstrou a possibilidade de [o ex-presidente] ser citado e intimado".

A defesa de Bolsonaro argumentou que o Código de Processo Penal é "explícito em determinar a impossibilidade de realização de citação de doente em estado grave", invocando o princípio da dignidade da pessoa humana como cláusula pétrea da Constituição Federal. Questionou ainda "qual a real necessidade e urgência concreta de se tomar tal providência invasiva", já que o ex-presidente "jamais se esquivou de qualquer chamado ao longo da investigação".

Todos esses argumentos foram sumariamente rejeitados pela Justiça. Uma oficial de justiça foi enviada à UTI e entregou a intimação pessoalmente a Bolsonaro, que assinou o documento às 12h47, dando ciência oficial da abertura da ação penal no STF. O precedente ficou estabelecido: a condição de saúde não impede intimação quando há evidência de capacidade, e a Justiça pode e deve intimar réus mesmo em situações adversas quando há interesse em dar andamento ao processo.

Ex-presidente foi intimado em leito de UTIReprodução

A morosidade sistêmica em processos de improbidade

Enquanto a intimação de Bolsonaro na UTI foi resolvida em questão de horas, os processos de improbidade administrativa no Brasil enfrentam uma morosidade crônica que beira a paralisia institucional. Pesquisa divulgada em 2017 pelo Instituto Não Aceito Corrupção (INAC), em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), revelou que os tribunais brasileiros levam mais de seis anos, em média, para julgar ações de improbidade administrativa.

O estudo analisou o Cadastro Nacional de Condenados por Improbidade Administrativa, mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no período entre janeiro de 1995 e julho de 2016. Os dados mostram que a Justiça brasileira aplicou 11.607 condenações definitivas, sem possibilidade de recursos, por improbidade administrativa em 6.806 processos. Porém, este número deveria ser significativamente maior, considerando a estimativa de que os processos de improbidade ainda em tramitação estejam na casa de centenas de milhares em todo o país.

A demora em julgar se servidores cometeram atos ilegais ou contrários à administração pública não apenas dificulta a recuperação do dinheiro desviado, mas também colabora para o congestionamento de processos na Justiça e, mais grave, contribui para a sensação de impunidade que corrói as instituições democráticas. Como observa o promotor de Justiça Roberto Livianu, presidente do INAC: "Quando mais se demora de chegar ao fim do processo, pior para a sociedade".

O advogado Tiago Asfor Rocha Lima, doutor em direito pela USP e membro da comissão que redigiu o novo Código de Processo Civil, identifica um dos principais problemas: "Como não há especialização, muitas vezes o magistrado escolhe julgar os casos de menor complexidade e deixar para depois o exame das ações de improbidade que se acumulam". Esta observação é particularmente relevante para compreender como alegações de "não intimação" podem ser utilizadas como subterfúgio para postergar indefinidamente o julgamento de casos politicamente sensíveis.

Tiago Asfor Rocha Lima, advogadoReprodução

A eficiência seletiva

Um dos aspectos mais reveladores da seletividade judicial brasileira é o contraste gritante entre a eficiência da Justiça Eleitoral e a morosidade dos processos de improbidade administrativa. Enquanto intimações para processos eleitorais são realizadas com precisão cirúrgica, garantindo que candidatos sejam notificados de todas as decisões que possam afetar suas candidaturas, os mesmos indivíduos se tornam subitamente "inintimáveis" quando se trata de processos de improbidade.

Este fenômeno não pode ser explicado por diferenças na legislação processual, uma vez que ambas as esferas utilizam os mesmos mecanismos de intimação previstos no Código de Processo Civil. A diferença reside na vontade institucional de dar andamento aos processos. A Justiça Eleitoral, pressionada pelos prazos constitucionais e pela visibilidade pública dos pleitos, desenvolve mecanismos eficazes para localizar e intimar candidatos. Já nos processos de improbidade, que tramitam longe dos holofotes da mídia, a mesma eficiência simplesmente desaparece.

O caso de Antônio Neto exemplifica perfeitamente esta dicotomia. Durante todo o período em que supostamente não podia ser intimado nos processos de improbidade, o ex-prefeito manteve intensa atividade política, participando de convenções partidárias, eventos públicos e, finalmente, registrando candidatura para as eleições de 2024. Em todos esses momentos, a Justiça Eleitoral conseguiu localizá-lo e intimá-lo sem qualquer dificuldade.

Antônio Neto, ex-prefeito de Lagoa do PiauíReprodução do Instagram

As consequências da impunidade

A morosidade sistemática em processos de improbidade administrativa, frequentemente justificada por alegações de impossibilidade de intimação, produz consequências devastadoras para a sociedade brasileira. Em primeiro lugar, contribui para a perpetuação da corrupção ao sinalizar para agentes públicos que a probabilidade de punição efetiva é mínima. Quando processos se arrastam por décadas, o efeito dissuasório da legislação de improbidade é completamente anulado.

Em segundo lugar, a demora judicial dificulta enormemente a recuperação de recursos públicos desviados. No período analisado pela pesquisa do INAC, as condenações definitivas por improbidade resultaram no pagamento de apenas R$ 3,208 bilhões, sendo R$ 1,557 bilhão em multas, R$ 1,525 bilhão de ressarcimento aos cofres públicos e R$ 126,782 milhões em bens confiscados. Estes valores, embora significativos, representam uma fração ínfima dos recursos efetivamente desviados, considerando que muitos processos prescrevem antes do julgamento final.

A prescrição representa, aliás, um dos principais benefícios que a morosidade judicial oferece aos réus em processos de improbidade. A Lei 8.429/92 estabelece prazos prescricionais que, embora suspensos durante o trâmite do processo, podem ser invocados em caso de paralisação prolongada. Alegações sistemáticas de impossibilidade de intimação funcionam como um mecanismo eficaz para criar essas paralisações, aumentando as chances de prescrição.

Por uma Justiça verdadeiramente imparcial

O contraste entre a intimação de Bolsonaro na UTI e os cancelamentos sistemáticos de audiências por alegada "não intimação" de políticos locais revela uma face inaceitável da Justiça brasileira. Não se trata apenas de diferenças na aplicação da lei, mas de uma distorção fundamental dos princípios constitucionais que garantem a igualdade de todos perante a Justiça.

O caso de Lagoa do Piauí, onde um ex-prefeito acusado de usar maquinário público para fins privados consegue se candidatar novamente enquanto seu processo de improbidade se arrasta há anos, simboliza a falência de um sistema que deveria proteger o patrimônio público e punir os responsáveis por sua dilapidação. A alegação de impossibilidade de intimação, quando o mesmo réu é facilmente localizado para processos eleitorais, expõe a natureza artificial e conveniente dessas dificuldades.

A sociedade brasileira merece uma Justiça que aplique a lei com o mesmo rigor e eficiência para todos, independentemente de status social ou político. Enquanto intimações em UTI forem possíveis para alguns e impossíveis para outros, o sistema judicial continuará sendo percebido como instrumento de proteção dos poderosos, e não de garantia da justiça. A reforma deste sistema não é apenas uma necessidade técnica, mas um imperativo democrático fundamental para a consolidação do Estado de Direito no Brasil.

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