Direto ao Ponto

CEZAR FORTES: From Australia with Love; ​confesso que vivi

A coluna do Cezar Fortes traz um linda crônica de Marcus Cremonese, que mora na Austrália.

07 de abril de 2023 às 13:30
4 min de leitura

(FROM AUSTRALIA WITH LOVE)

Tenho vivido na Austrália há bem mais de três décadas. Aqui e acolá vejo notícias do Brasil. Já que há muito o que se ver no cotidiano deste outro lado do mundo, a isso dedico minha busca por informação.

Rylstone, Austrália.Reprodução

Na semana passada, por indicação de amigos daí, comecei a ver uma série de filmes da TV Brasil. São documentários e filmes que revelam, para muitos que vivem no Brasil de hoje, o lado sombrio – e doloroso – do país que resultou daquele fatídico 31 de março de 1964.

Três dias atrás vi o "Batismo de Sangue". Esse filme fez reacender em mim uma pequena lamparina, aquela que ilumina o restinho de um tipo de Brasil a que tive a oportunidade de pertencer e que volta-e-meia teima em viver dentro de mim. Principalmente quando revejo pedaços da nossa história recente.

Anúncio BATISMO DE SANGUEDivulgação

Os personagens centrais do filme são os frades dominicanos. Sim, estudei com os dominicanos menos de uma década antes da implantação da ditadura de 64. Menino ainda, era soprano no nosso coral, conhecido como Pequenos Cantores de São Domingos. Em duas temporadas em São Paulo, vivi por dias naquele Convento de Perdizes, que revisitei vendo o filme. Mas o filme apagou em mim qualquer centelha de saudade. Pelo contrário.

Cena do filme BATISMO DE SANGUEDivulgação

No final de 1970, chegando de Juiz de Fora ao Rio numa noite quente, fui à procura de ex-colegas no Instituto Villa-Lobos, na Praia do Flamengo, onde estudara por dois anos. Acontece que o cônsul suíço estava sequestrado e a Polícia Militar do Rio andava pegando gente aqui e ali. Estava havendo uma batida no aterro do Flamengo. Barbudo e cabeludo, coisa da época, minhas feições eram parecidas com as de um dos suspeitos. Fotos de "terroristas" se viam nas mais diversas paredes, desde os Correios até os banheiros de bar.

Não deu outra. Jogado dentro de um camburão no Flamengo fui parar no DOPS da rua da Relação, pertinho do Correio da Manhã (em cuja oficina foi impresso o nosso Jornal Sete, da Juiz de Fora de 1970). Fiquei no DOPS perto de duas horas sem levar uma porrada. Milagre? Coisa de pura sorte. Levava debaixo do braço o "O Fenômeno Humano" do Teilhard de Chardin, que viera lendo dentro do ônubus da Útil.

Fenômeno Humano" do Teilhard de ChardinDivulgação


O capitão resolveu me fazer todo o tipo de perguntas logo sobre o livro daquele frade "maluco". Esticando as respostas eu aproveitei para ganhar tempo enquanto os canas telefonavam para o antropólogo João Ribeiro, que me convidara para ir trabalhar com ele no Projeto Piauí.

Quando o João Ribeiro atendeu ao telefone, eu não era o sequestrador procurado – e me devolveram a carteira. Em pé, parado em frente à mesa do capitão, abri a carteira para checar se tudo estava ali e se não havia sido "plantada" alguma coisa lá dentro. "Vovê não quer ir embora não? Quer ficar mais tempo?" Respostas me vieram à cabeça mas ficaram por ali mesmo. Qualquer uma seria um desacato à autoridade.

Parti para o Piauí com a Beth três meses depois. Onde cairia de novo nas malhas da tal "segurança nacional".

Crônica do MEU amigo Marcus Cremonese. (Rylstone, NSW, Austrália).

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