Direto ao Ponto

Descoberta ou invasão?

03 de fevereiro de 2023 às 07:50
5 min de leitura

As invasões são parte do contexto histórico da humanidade. Os métodos variam mas os resultados são quase sempre os mesmos. Com armas, a Rússia hoje invade a Ucrânia; com portos e infraestrutura a China "ajuda" países africanos e da Oceania. É a história caminhando.

Índios yanomami em Roraima.Foto: Condisi-YY/Divulgação

O cognome "colonização" tentou e veio camuflando o significado de invasão. Em vez de armas levavam-se espelhos e penduricalhos, como visto nos livros de história do Brasil. Eram os chamados descobridores. Em 1788, quando a Austrália foi descoberta, ela era habitada por centenas de tribos que aqui já viviam por 65 mil anos. Sem lançar mão de espelhos, os ingleses foram diretos às armas e houve inúmeras matanças.

Mas, para mudar esse enfoque cruel e desumano, resolveu-se aplicar o cristianismo. Entre 1910 e 1970 governos de estado, "organismos sociais" e igrejas tiraram as crianças de suas famílias para torná-las "civilizadas" em reformatórios. Essas crianças – todas crescendo sem a língua materna – se tornaram a "stolen generation".

Os colonizadores daqui chamaram de "assimilação" a esse processo. Que eu acho tão cruel quanto o da cavalaria americana. "Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu
país”. Isso foi dito em 15 de abril de 1998. Pouco depois aquele deputado atenuava a coisa dizendo que "não pregava que o mesmo destino dado aos índios americanos fosse dado aos brasileiros". Queria economizar balas, creio eu...

Na Austrália, em tempos mais recentes, tanto brancos quanto aborígenes passaram a avaliar e até mesmo contestar a "descoberta" do país – que é celebrada no dia 26 de janeiro. Em 2000, essas ideias e as milhares de cabeças que as criavam vieram às ruas na "Walk for Reconciliation", uma passeata de mais de 250 mil pessoas em Sydney, pedindo ao governo federal que oficialmente dissesse "sorry" aos povos aborígenes. Para a maioria, a descoberta foi mesmo uma invasão.

John Howard, o então primeiro-ministro, conservador, recusou-se e nunca disse o "sorry". Mas em 2007, o Labor Party foi eleito. No dia da posse, e em solenidade especial, Kevin Rudd disse "sorry" a esses povos, em nome de todos os australianos. Em 2015, com apoio de todos os partidos, foi criado o "Referendum Council", para listar e discutir ideias e termos pelos quais os aborígenes serão reconhecidos na constituição. Essas discussões prosseguiam mas o novo governo conservador nunca agiu para que algo acontecesse. Até que em maio de 2017 o mesmo conselho divulgou o "Uluru Statement from the Heart", documento que propõe uma "voz dos aborígenes" dentro do parlamento.

Depois de nove anos de um governo conservador (e inerte quanto ao assunto) o atual primeiro-ministro Anthony Albanese foi eleito pelo Labor Party, em maio de 2022. Dois meses depois Albanese já mostrava uma minuta de texto da emenda constitucional. Ele anuncia para futuro próximo um plebiscito onde todo o país irá se expressar sobre essa emenda e a criação desse Indigenous Voice to Parliament.

Sim, neste país de área continental, ainda há muito a ser feito em termos de melhoria de condições de vida para os povos de regiões distantes. Mas a presença da cultura desses povos é mais apreciada e divulgada no nosso dia-a-dia através das pinturas, da música, das danças do teatro e até da moda. Há mesmo comunidades distantes onde as línguas aborígenes começaram a ser ensinadas nas escolas primárias.

Tudo me leva a crer que o governo que agora se instala em Brasília esteja pensando como o daqui. Ou seja, não é mais admissível nos dias de hoje que um dirigente pense como na época das tais "descobertas". Se isso se concretizar, fotos de povos indígenas morrendo à míngua jamais serão vistas.

(O texto acima é de autoria de Marcus Cremonese, querido amigo mineirinho que mora na Austrália e que respira nosso país, de longe)

Rylstone, 26 de janeiro de 2023

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