Desde o dia 13 de março de 1823, os piauienses aguardavam pelo momento que aconteceu no sábado, 30 de novembro último. Foram 201 anos até que o militar português respondesse pelas vidas de centenas de piauienses. As contagens menores apontam para 200 a 300 patriotas, que tombaram em defesa da liberdade do jugo lusitano. Os números superlativos ultrapassam a mais de mil guerreiros mortos.
O júri se deu na Capital dos Carnaubais. A Câmara Municipal de Campo Maior recebeu autoridades, atores, professores, alunos e uma plateia atenta ao desenrolar do julgamento. A Acale, Academia Campomaiorense de Ciências, Artes e Letras, juntamente com professores do campus Heróis do Jenipapo, da Universidade Estadual do Piauí, compuseram o conselho de sentença, em número de 7.
População lotou plenário da Câmara Municipal de Campo Maior.
A dinâmica iniciou com a oitiva do “povo”, do acusado e, posteriormente, acusação e defesa fizeram a sua parte. Representando a acusação, o promotor de Justiça, Williams Silva de Paiva, que atua no Maranhão, mas é campomaiorense. Para defender Fidié, o professor de Direito Penal e advogado criminalista, Hartônio Bandeira. A juíza aposentada, Zilnéia Gomes Barbosa de Sousa, que foi magistrada em Campo Maior.
Fidié no banco dos réus.
Ao final, o então Governador das Armas da Província do Piauhy, João José da Cunha Fidié, foi absolvido por 4 x 3. Venceu a tese que defendia o comandante do massacre, sustentando que era apenas um militar que estava cumprindo ordens superiores. O resultado apertado cabe a possibilidade de uma reforma no veredito. Será que haveria condições para um novo tribunal do júri? Quem sabe trazendo outros personagens históricos para fortalecer o contexto.
Vilão sem pecado
O piauiense não nutre grande admiração pelo militar que conduziu o sufocamento dos ideais de liberdade no começo do século XIX. Porém, ficou a dúvida com a quantidade favorável a livrar o réu da condenação. Certamente que a defesa tem seus méritos. Conseguiu aquilatar sua tese e ela prevaleceu, convencendo os jurados. Uma vitória secular. O Dr. Hartônio pode celebrar e acrescer ao currículo o triunfo no tribunal histórico.
O major, que galgou ao posto máximo de tenente-general, aposentando o uniforme em 1854 deixou um livro de memórias. “Vária Fortuna d’um Soldado Portuguez”, lançado em 1850, quando já era brigadeiro, onde ele menciona a batalha em solo piauiense. O algoz do Jenipapo minimiza o enfrentamento. Relatando-o como um combate sangrento, mencionou os 200 brasileiros mortos e os 542 que seguiram prisioneiros com o exército para o Estanhado, que corresponde ao município de União. E, depois, a Caxias, no Maranhão.
Livro lançado por Fidié em Lisboa, em 1850.
Fidié, na verdade, bateu em retirada à vizinha cidade maranhense porque não tinha recursos para seguir viagem a Oeiras. Aquartelado na terra do poeta Gonçalves Dias, foi vendo a sua tropa de sentinelas ser abatida soldado a soldado. “Obra” do tenente Alecrim. Um figura fora de série. A vida dele dá uma série. Por sua bravura no combate corpo a corpo com o inimigo, suas proezas o tornaram um vulto. A ponto de mudar o nome do morro, que antes era Tabocas. Alecrim marcou.
O gajo rendeu-se em 31 de julho de 1823. Depois foi levado à capital, Oeiras. Onde chegou em novembro do mesmo ano. Em seguida, encaminhado a Salvador, Bahia. E, finalmente, foi encarcerado no Rio de Janeiro. Dom Pedro I foi visitá-lo pessoalmente e o elogiou por seu desempenho no Piauí. Foi mais de um ano perambulando pelas cadeias até retornar a Lisboa. Em Portugal passou a defensor dos interesses do Imperador do Brasil, na surdina.
O senhor das armas não demonstrou em nenhum momento algum sentimento pelos que ficaram estirados em Campo Maior. A vilania tem um personagem que manteve-se altivo em todos os momentos. A vitória dos piauienses ganha valor pela coragem ao enfrentar um exército profissional, com um grupo numeroso, mas sem conhecer exatamente a dureza de uma batalha até ela arrancar-lhe a vida. Assim nascem os heróis. Assim um vilão se torna memorável.
A Batalha continua
O distanciamento dos fatos, o desinteresse, a falta de compromisso histórico e a ausência de uma política mais contundente vêm esmaecendo a força de uma história fantástica. O Piauí foi o primeiro a defender com sangue a separação da então colônia portuguesa, Brasil, da Coroa lusitana. Encerrando na Bahia, em 2 de julho. Diferentemente, aqui foi apenas um conflito, mas com muitas baixas. A resistência baiana foi por 1 ano e 4 meses, com 150 perdas humanas.
O Piauí foi o grande protagonista das lutas pela independência, mas não consegue por luzes que melhorem a visualização do feito histórico. Em 1973 o então governador Alberto Silva construiu o monumento “Heróis do Jenipapo”, que marca o território da luta. Um museu expõe permanentemente objetos da época, como armas, uniformes e demais apetrechos e ferramentas da batalha.
Monumento aos Heróis do Jenipapo.
No governo Mão Santa iniciou encenação do conflito, com texto de Aci Campelo e direção de Arimatan Martins. Ressaltando o trabalho de sonoplastia e sonorização de José Dantas. Participei durante os 7 primeiros anos como ator. Tinha uma carga dramática muito forte. Intensa. As pessoas iam às lágrimas. Super emocionante. Ao longo dos anos, a montagem fez muitas experimentações. A história foi esgarçada ao máximo, com a justificativa de licença poética.
Encenação da Batalha do Jenipapo, com participação do articulista.
A licenciosidade perdeu-se da poesia e tornou-se patética. Às vezes ultrapassando os limites históricos. Já houve apresentação onde o major Fidié foi morto em São Luís. Cidade onde desembarcou em 8 de agosto de 1822 para assumir seu cargo em Oeiras e nunca mais pisou por lá. O participante que questionou o absurdo foi afastado do elenco. Aconteceu em evento oficial do estado.
Fico me perguntando se foi falta de pesquisa que ocasionou o lapso. Se foi um delírio criativo, que bate de frente com os fatos historiografados. Fidié faleceu aos 68 anos, em Lisboa, mais de 30 anos após a fatídica Batalha do Jenipapo. O diretor que escorregou na história segue à frente da apresentação.
Muito questionado pela comunidade teatral, venho recebendo manifestações de atrizes e atores. Eles indagam o porquê da Secult não promover edital público para o texto, para a direção, para a produção, inclusive de elenco, da montagem que conta a nossa história. Eu também não sei. A única certeza que tenho é que para ter licença, obrigatoriamente, tem que ser poética. Se a montagem é realista, a história não pode ser aviltada.
Na telona
Ainda não temos um filme que retrate uma narrativa da batalha com os seus principais personagens e com as adições recentes aos eventos estratificados. Pela passagem dos 200 anos, Franklin Pires lançou um drama com recorte localizado numa família que acompanha e se envolve na peleja. Uma história onde se destaca a grande atriz monsenhorgilense, Kelly Campelo, em sua atuação impecável, sendo premiada pela composição da personagem. “Terra Querida - O Outro Lado da Batalha do Jenipapo” circulou pouco. Não foi às massas, que focalizou no filme.
Atriz Kelly Campelo com premiação do filme.
Há um equívoco crasso, que não passou despercebido. Durante um diálogo, é mencionado que os cearenses estavam chegando de Crateús. Cidade que atualmente compõe o Ceará. Mas até o dia 22 de outubro de 1880, Crateús era terra piauiense, sendo desmembrada de Castelo do Piauí e transferida ao Ceará - quase 50 anos após a batalha. São pequenos detalhes que mostram a dimensão do mergulho nas obras que narram o maior e mais sangrento combate em defesa da liberdade brasileira de Portugal. Ou a falta dele.
No primeiro governo do senador e ministro Wellington Dias foi iniciado projeto para um filme épico sobre a batalha. Infelizmente a proposta inicial foi precarizada, acabou encaminhando para outra coisa completamente diferente, emperrou e não conseguiu mais avançar. Aí vem aquela velha constatação: se fosse nos EUA, tinha filme sobre a luta às dezenas. É verdade. Um dia teremos muitas versões, olhares, enfoques e seus desdobramentos.
O Piauí está em dívida com a telona. Nosso povo merece um longametragem que aborde a sua história, respeitando os fatos e trazendo um olhar que contemple os que realmente fizeram a diferença no resultado. Aspectos como a pilhagem dos bens e víveres de Fidié e seus desdobramentos, que tornaram a vitória numa grande derrota. Ele nunca assumiu que ao saber que saiu do “triunfo” com uma mão na frente e outra atrás, os planos mudaram completamente.
O objetivo, que era chegar em Oeiras e sufocar o “golpe” do brigadeiro Manuel de Souza Martins, transformou-se em fuga para uma suposta província aliada. Só que Caxias não tinha um destacamento numeroso. Em resumo, Fidié foi pro cheiro do queijo. E suas bagagens foram parar em Sobral (CE), mas isso é assunto para outro texto. E daria outra película. Afinal, o que fizeram com os valores e os alimentos do exército de Fidié? Haja recortes riquíssimos para muitos filmes.
Túmulos simbólicos em homenagem aos patriotas piauienses.