CENSURA? Escola de Teatro Gomes Campos proíbe montagem de peça que foi censurada na ditadura militar

Plínio Marcos, que enfrentou e resistiu aos antidemocratas, não merece ser censurado no Piauí, estado brasileiro que dá quase 80% dos votos à esquerda

Um bom teatrólogo vai sofrer alguma espécie de censura em sua trajetória. Mas só os grandes. Os que conseguem entrar na imaginação do mundo, encontrando o ponto onde as verdades se veem refletidas num espelho. Trazê-las à tona por si já é um ato de muita coragem. Ainda tem que montá-las e fazê-las cumprir seu papel de comunicar ao mundo um enunciado normalmente amargo, travoso, desconfortável, mas pleno e protegido pela força da veracidade, que já nasce blindada. 

Fachada da Escola Gomes Campos

E quando estreia censurado? O santista Plínio Marcos de Barros deve estar rindo do cenário em que, mais uma vez, foi impedido, silenciado e proibido. Só que dessa vez dentro de uma escola. Para melhorar o enredo, uma escola de teatro. Ambiente onde supostamente reina um clima de liberdade de expressão numa amplitude maior do que nos demais espaços. É zona de criação. Zona livre. Onde se experimenta para saber onde estão os limites das normativas sociais. Não é local confortável para repressão. 

O jornalista, escritor, autor, ator, diretor e censurado, Plínio Marcos, é um dos gigantes da dramaturgia brasileira, que atravessou fronteiras levando suas obras chocantes para outras regiões bem distantes. Barrela foi escrita em 1958. Fez uma única apresentação em 1959 e só estreou mesmo quase 20 anos depois, em 1978, com o princípio do fim do regime militar. 

Plínio Marcos, jornalista, escritor, autor, ator e diretor

Todas as peças de Plínio foram proibidas no país inteiro. Um artista maldito, marginalizado, tem mais valor na clandestinidade. As montagens eram apresentadas na madrugada para um público seleto, que sigilosamente prestigiava o artista que desafiava a “ordem” com seus textos que traziam um realismo cru, das ruas, dos prostíbulos, das docas, dos terreiros, das celas. Os personagens reais, vivendo uma vida real, com a linguagem chula normalizada nos diálogos. As academias se arrepiavam de pruridez com a ascensão dos proxenetas ganhando protagonismo, juntamente com as prostitutas, os estivadores, as travestis e os linguistas tornaram-no objeto de estudo com o vocabulário desbocado dos personagens.

Há muito a se ler e ver de Plínio Marcos. Dois Perdidos Numa Noite Suja, Navalha na Carne, Balbina de Iansã, Abajur Lilás, pelo menos, devem estar na lista dos teatreiros. Ele ainda é estudado. Tem muito o que ser lido em trabalhos sobre sua obra emergida dos submundos, dos becos, dos bares, das sarjetas, dos inferninhos, dos terreiros, dos barracos da cidade. Recomendo uma publicação que decanta bem, com densidade, o universo pliniano. A Crônica dos que não Têm Voz, de Javier Arancibia Contreras, Fred Maia (piauiense de Oeiras), Vinicius Pinheiro, editada pela primeira vez em 2002. 

Capa do livro indicado no texto

O dramaturgo deu voz aos anônimos, aos excluídos, aos indesejáveis, aos marginalizados, aos desgraçados, aos proibidos, aos censurados. Por conta disso, viu e viveu na pele o que os seus personagens viveram. O melhor de tudo. Todas as narrativas urdidas pelo exímio escritor eram reais. Histórias reais, com personagens reais, com falas reais. Longe do português padrão. Um mundo onde a mão do poder público normalmente não alcança. E quando encontra, é para oferecer a fúria de um cacetete.  

Das 29 peças concluídas e publicadas, sendo que 10 delas só vieram a lume após a sua morte, em 1999, a maior parte é do mundo marginal. Mas, entre elas, a ternura do artista na obra dedicada às crianças. As Aventuras do Coelho Gabriel, Assembleia dos Ratos, História dos Bichos Brasileiros: o Coelho e a Onça ou a onça que espirra não come carne. Plínio Marcos, que enfrentou e resistiu aos antidemocratas, não merece ser censurado no Piauí, estado brasileiro que dá quase 80% dos votos à esquerda.

Aqui, NÃO!

Eu estava pesquisando sobre o professor Gomes Campos, que este ano celebra 100 anos do nascimento (mas o SALIPI não o mencionou entre os homenageados) quando fui informado sobre a proibição de uma peça na escola que leva o nome do teatrólogo, que foi um divisor de águas no teatro piauiense. Nem dei tanta atenção, diante de outras denúncias que estão sobre apuração. Aliás, o rosário de queixas de alunos e professores, principalmente, sobre a atual gestão, é grande e está aumentando.

Deixei as coisas acontecerem. Sem fazer nenhum esforço, fui recebendo informações que complementam-se até eu entender que era algo grave. Conforme manda o figurino, fui ouvir todos os lados, que neste caso não são apenas dois. São vários. Alguns pediram para nem mencionar os casos que relataram para evitar represálias. Com o compromisso de manter as fontes em sigilo, ouvi a fala inicialmente dos estudantes. 

Segundo expuseram, ao tomar conhecimento que a peça Barrela, de Plínio Marcos, estava iniciando o seu processo de montagem, os alunos foram abordados pela coordenação da escola, que proibiu que seguissem com o trabalho. Constrangidos, indignados e revoltados, os alunos procuraram a direção para tentar reverter a situação.

Plínio Marcos atuando como ator

É certo que Barrela, que na gíria dos presídios é a curra coletiva. O estupro de presos por outros presos. É pesado. A encenação é oriunda de fato jornalístico acontecido em Santos com um jovem burguês que brigou na rua e foi parar numa cela de delegacia. Tem palavrões. Claro que tem. A cena é numa cela cheia, com todo tipo de infratores e neurodivergentes em surto. Alguém acha que vão falar o português pronunciado no Chá da Academia Brasileira de Letras?

Publicação da peça em versão HQ

Os alunos se comprometeram de tirar todas as palavras rasteiras. Não encenar a parte de nudez, entrando em todos os acordos possíveis para seguir com a montagem. O elenco é maior de 18 anos. Para quem é de fora, uma jovem atriz ou um jovem ator não está afim de fazer qualquer coisa. Os estudantes de teatro sonham em montar as peças polêmicas, as distópicas, as clássicas, as que podem render um bom público. O diretor, renitente, não cedeu. Ficou um climão. É um relacionamento tensionado.

Ouvi professores. Parece que não foi apenas Plínio Marcos. Tem peça de Nélson Rodrigues também na lista dos censuráveis? Por causa de um beijo entre mulheres? Eu fiquei estupefato. Gente, é uma escola de teatro. Não é o Dicastério das Causas dos Santos do Vaticano, que trata do processo de beatificação e canonização. Não é o catecismo tecido em razões religiosas que podem tocar o universo pagão. Eles até conseguem se enlaçar, mas são de naturezas divergentes. Um celeste e outro telúrico. O teatro é santo em sua paganice. Não dá para encaixá-lo em dogmas. Ele é o destruidor de paradigmas.

A voz do diretor

11h39 da manhã de hoje eu enviei a seguinte mensagem ao diretor da Escola Técnica Estadual de Teatro Professor José Gomes Campos.

Franklin Pires, diretor da Escola Gomes Campos

Bom dia, Franklin!

Willian Tito, da coluna Lugar de Fala, do portal Lupa1.

Tudo bem?

Estava pesquisando para matéria sobre os 100 anos do Campos quando recebi a informação que uma peça teatral de Plínio Marcos foi impedida pela direção da escola de ser montada pelos alunos, é verdade?

Se sim, por qual motivo?

Ele mandou uma sequência de 3 respostas. A primeira às 11h45.

“Falta de planejamento do professor. Em ambiente escolar existe algo chamado plano de curso e plano de aula, onde os professores planejam suas aulas ao longo do período e repassam tudo aos coordenadores. O professor em questão nunca entregou nenhum plano, fato pelo qual foi notificado, e resolveu colocar uma peça que não estava no programa porque ele não entregou o programa. Poderia ser do Plínio Marcos ou Shakespeare, escola é lugar de planejamento. Não é uma oficina de teatro. É uma escola de teatro.”

Às 11h48 enviou mais uma mensagem.

“Em uma escola existem diretores, coordenadores pedagógicos e coordenadores de eixo que junto com os professores discutem o plano do semestre. É tudo uma questão de planejamento.”

A última mensagem foi enviada às 11h49.

“Inclusive o que orientamos a todos os professores no início do semestre foi que desenvolvessem atividades para homenagear o centenário de nascimento do Gomes Campos. Essa foi a sugestão da direção e coordenação, justamente para reverenciar o nome do dramaturgo que a escola homenageia.”

Fui checar as informações com o professor, que preferiu ter seu nome preservado. Ele rebate dizendo que entregou sim o planejamento e que a montagem era um trabalho de sala de aula. Uma coisa simples. O mestre, que é bem querido pelo alunado, pelo o que pude perceber, informou que a argumentação não consegue justificar. Na falta de uma fala mais consistente, optou pelo rigor do padrão dos protocolos burocráticos. Ou burrocráticos. 

Censura nunca mais

Com quase 40 anos de comunicação, já vi muita coisa. Mas jamais imaginei um dia testemunhar a proibição de uma peça teatral dentro de uma escola de teatro. A tentativa de justificar do diretor não me convenceu. Creio que um homem investido da direção de uma escola formativa de artes não deveria ter uma postura autoritária. Não combina. Ao contrário, entra em desalinho com a estrutura libertária e libertadora do teatro. 

Falta tato no traquejo com alunos e professores. Em nenhum momento houve por parte da direção a tentativa de entrar num acordo. Conseguir encontrar o caminho do meio. Uma forma de acolher a proposta de alunos e professores. Promover, fomentar, facilitar e dar o suporte para as coisas acontecerem é o que se espera do diretor da Gomes Campos, que é ator e autor. É artista censurando artista. Inacreditável.

Adaptação de Barrela para o cinema

Tem um clima tóxico circulando pelos corredores da escola que deveria cultivar um espaço de paz, harmonia e boa-vontade. Tem muitas outras informações que se agregam a essa da censura. Algumas difíceis de comprovar. Mas todas elas confirmam um relacionamento inadequado do diretor com a coordenação para com alunos e professores. Há denúncias de assédio também. Ainda em apuração.

É bom que se diga que a gestão da escola é apontada pela Secretaria de Cultura do Piauí. Neste caso, o secretário de educação, Washington Bandeira, não tem nada a ver com o peixe. Justamente porque nem todos os critérios aplicados nas escolas comuns também se encaixam numa escola de teatro. Só que não está funcionando. É hora de rever muita coisa. No centenário do professor Campos, uma reforma ia bem. Não meramente física. É preciso repensar a estrutura. É preciso atualizar a forma de relacionamento com o alunado. Nossos futuros artistas merecem melhores condições de ensino e um pouquinho mais de afeto.

Infelizmente, a gestão da Gomes Campos é problemática há anos. A anterior também sofreu graves percalços. Discussões, alunos destratados, gritos. Quem dera fossem apenas dramas, mas é real. A atual tem desmotivado alunos, que aumentam os números de evasão. Professores também estão procurando transferência. Outros queixam-se de perseguição continuada. Os alunos, em sua maioria, creem que a escola não oferece as condições necessárias para uma formação sólida. Acho que nunca ofereceu. A Gomes Campos é um arranjo que ainda não consolidou uma sistemática eficiente do processo formador. Prestes a completar 20 anos de sua inauguração, não parece dar sinais proativos neste sentido.

Fachada da Escola Gomes Campos

Barrado no baile

Só agora vim me dar conta da força de um episódio que vivi com o Plínio Marcos, das três vezes que encontrei com ele. Não foi a primeira vez que o autor foi barrado no Piauí. Um certo dia, no final dos anos 90, fui convidado pelo poeta e historiador, Chico Castro, para acompanhá-lo em uma festa que estava acontecendo na cobertura da Federação das Indústrias do Piauí. Era o aniversário de 60 anos do grande incentivador da cultura piauiense, José Elias de Arêa Leão, que chegou a presidir a Fundação Cultural do Piauí, órgão que antecedeu a Secult.

Plínio Marcos era o convidado ilustre que o Chico estava levando para a festança. No elevador, aguardando-o, de repente apareceu um segurança afirmando que o cidadão que estava de bermuda não poderia subir. Era o Plínio. Diabético, o artista não podia vestir roupas apertadas ou calçar sapatos. Naquela época não tinha zap. Celular era uma fortuna. Demos a volta e fomos embora.

Hoje, lembrando da cena, recordei que o Plínio, sempre calmo, não esboçou nenhum incômodo. Um leve sorriso e o caminhado compassado com o seu amuleto sempre na mão. Uma espécie de cruz negra que ele sempre carregava. Foi com uma nobreza estupenda que ele enfrentou mais uma proibição. Ser barrado numa festa era fichinha para tudo que ele enfrentou, sendo preso várias vezes. Conheceu a miséria, a exclusão e a perseguição do estado. Mas nada disso foi o suficiente para atingir aquela entidade.

Eu quero pedir desculpas em nome da sociedade piauiense pelo contratempo na montagem de uma obra do gigante Plínio Marcos. Eu quero pedir ao diretor Franklin Pires que ele repense sobre o espetáculo e, principalmente, que ele faça um esforço para melhorar o relacionamento com o corpo discente e docente. Flexibilidade. Jogo de cintura. Uma busca pelo entendimento. Precisamos unir esforços para que a cultura piauiense se fortaleça. A arte vai agradecer.