A Família entre o arrependimento e o perdão

Famílias infelizes tem sua infelicidade sob o pecado e o pecado exige redenção

 

Por José Ribas

Jornalista 



Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.” Liev Tolstói abre Anna Kariênina com essa sentença que, de tão precisa, parece talhada em pedra.


 

After the earthquaque (1884), Sophie Gengembre Andersson


A felicidade familiar tem uma estrutura reconhecível: um equilíbrio entre o dever e o afeto, entre a renúncia e a gratidão, entre o erro e o perdão. A infelicidade, por outro lado, é caótica, dispersa, multifacetada – cada casa em ruínas exibe suas próprias rachaduras. Mas, em última instância, a fonte dessa ruína é sempre a mesma: o pecado.

E onde há pecado, deve haver redenção – ou então só resta o desespero.

No romance de Tolstói, duas histórias se entrelaçam.

De um lado, Anna, que se entrega à paixão proibida e é consumida pelo remorso, pela exclusão e, por fim, pela tragédia. De outro, Liévin, personagem secundário cuja existência vacila entre a descrença e a necessidade de um sentido maior, até que, no desfecho, ele compreende que a salvação não está na glória ou no reconhecimento, mas no ato humilde de viver segundo uma ordem moral superior.

Anna se desfaz em sua busca por prazer e libertação; Liévin encontra paz na obediência ao bem. Dois destinos que nos lembram que a vida se desenrola sempre entre essas escolhas – entre a entrega ao ressentimento e a possibilidade da restauração.

A família de Firmino Filho, despedaçada pelo suicídio do patriarca, é um retrato moderno dessa tragédia universal que somente a literatura é capaz de compor e nos expor.

Firmino Filho, ex-prefeito, encerrou sua história de maneira abrupta, e no vácuo de sua ausência ficou um rastro de discórdia e mágoas. A viúva, Lucy de Farias, mergulha na depressão, anestesiando-se com medicamentos para cumprir o mínimo que se espera dela. As filhas, Cristina Soares e Bárbara Macedo, tornaram-se antagonistas: Cristina acusa a mãe de adultério, Bárbara, por sua vez, se vê isolada em meio a disputas políticas e familiares.

O que um dia foi um lar tornou-se um tribunal, onde cada um se empenha em provar sua própria retidão enquanto o tecido da família se esgarça. Não há ali um criminoso único – há feridas não cicatrizadas, erros não confessados, palavras não ditas no momento certo.

E, no entanto, há cura para todas as dores, desde que se aceite a humildade do arrependimento.

A grande tragédia das famílias infelizes não é a dor que sofrem, mas a recusa em superá-la. A mágoa pode ser viciante – há um prazer sombrio em alimentar ressentimentos, em nutrir a própria ferida e justificar a própria dureza de coração. É estranhamente saboroso o estatus de vítima e por isso mesmo infligir dor naqueles que acusamos causa de nossas desgraças pessoais.

Mas o ressentimento é um veneno que mata a alma lentamente. E aqueles que o alimentam não se tornam mais fortes, apenas mais amargos, mais presos a um passado que já não pode ser alterado.

O perdão, por outro lado, exige uma coragem que poucos estão dispostos a ter. Perdoar é aceitar que a justiça perfeita é impossível neste mundo, que ninguém pode corrigir o passado, mas que todos podem, sim, escolher um futuro diferente.

Mas nem por isso o perdão é passividade, tão pouco é conivência; é um ato de força, porque aquele que perdoa não apenas se liberta da ira, mas também se compromete a carregar sua própria cruz sem transferi-la para os outros.

Mas perdoar e ser perdoado não é um passe de mágica – é um trabalho diário. A verdadeira restauração exige a confissão sincera dos próprios erros, o pedido de desculpas que não busca autojustificação, e o esforço real para não reincidir. “Vai e não peques mais” – essa foi a ordem de Cristo à mulher adúltera. O arrependimento que não se traduz em mudança não passa de uma ilusão piedosa.

Há feridas que exigem cuidado especializado. Traumas não se resolvem sozinhos, e há momentos em que é necessário buscar ajuda na terapia, compreender os nós que atam nossa psique e aprender a desatá-los.

Mas, para o católico — como sou —, há um caminho mais profundo: a confissão sincera, seguida de uma verdadeira contrição. Daí que o sacramento da reconciliação do homem com Deus não é um rito vazio; é a oportunidade de olhar para si com honestidade, reconhecer as próprias falhas e, através da penitência, purificar a alma.

O pecado nos separa de Deus e dos outros; a confissão nos reconduz à comunhão.

A família não é um mero arranjo social, nem um contrato frio baseado em interesses. A família é um projeto espiritual, uma missão. E sua fundação está no amor – não no amor sentimentalista que tudo permite e nada exige, mas no amor que reconhece os erros, que se dispõe a carregar fardos alheios e que, acima de tudo, sabe perdoar.

Tolstói nos ensina que a felicidade familiar tem uma ordem. Mas essa ordem não se sustenta sozinha: ela precisa ser mantida, reconstruída sempre que necessário, purificada quando se contamina pelo pecado. Há sempre um caminho de volta, desde que estejamos dispostos a trilhá-lo.

E se o pecado destrói, a redenção reconstrói. Que cada um escolha, então, se quer seguir o destino de Anna ou o de Liévin. Se quer afundar-se no rancor ou reconstruir-se pelo perdão. O fardo do ódio nos dobra, nos esmaga – mas o alívio da graça nos devolve à dignidade da vida, ou pelo menos uma vida menos indigesta.