Quebra genérica de sigilo: tema 1148 e os limites da investigação penal

STF analisa se é legítima a quebra genérica de sigilo de dados para investigar crimes complexos.

Quero abordar um tema de extrema relevância atualmente em julgamento no Supremo Tribunal Federal: o Tema 1148. Trata-se da discussão sobre a possibilidade de o Estado, por meio do Judiciário, determinar a quebra de sigilo de dados telemáticos de forma genérica para fins de investigação criminal de alta complexidade.

 

Investigação - Foto: Markus Winkler na Unsplash.

O caso chegou ao STF por meio de um recurso extraordinário apresentado pelo Google, questionando decisão do Superior Tribunal de Justiça que autorizou a quebra de sigilo telemático de usuários em caráter genérico para investigação de crime complexo. Especificamente, tratou-se da quebra do sigilo referente a palavras-chave pesquisadas em um período de aproximadamente cinco dias. Ou seja, todas as pessoas que buscaram determinados termos no Google passaram a ser potenciais investigados, mesmo sem qualquer ligação com o crime em apuração.

A questão central em debate é: seria legítimo iniciar uma investigação criminal de forma tão ampla, sem um alvo específico, apenas com base em uma presumida associação decorrente de buscas na internet? No fundo, está em jogo a tensão entre o direito fundamental à privacidade e a eficiência da persecução penal em crimes graves.

 

Ricardo Pinheiro.

A relatoria original, a cargo da ministra Rosa Weber (já aposentada), votou a favor do Google, reconhecendo que tal medida violaria o direito à privacidade de cidadãos sem relação com o crime. O ministro Alexandre de Moraes divergiu, enquanto o ministro André Mendonça acompanhou o voto da relatora. Atualmente, o julgamento está suspenso em virtude de pedido de vista do ministro Gilmar Mendes.

O grande risco desse precedente é a inversão da lógica de produção de provas no processo penal brasileiro. O Estado, a pretexto de suas limitações investigativas, não pode transferir ao cidadão o ônus de se justificar enquanto inocente, submetendo toda a coletividade à devassa de seus dados em razão de buscas motivadas pelo interesse legítimo em um caso amplamente divulgado pela mídia. Basta imaginar um cidadão que, impactado pelas notícias, decide se informar sobre o crime no período determinado e, por isso, torna-se suspeito unicamente pelo seu histórico de buscas.

Se admitido esse modelo de investigação generalista, estaríamos diante de um perigoso precedente para o Estado Democrático de Direito. O mesmo raciocínio poderia futuramente servir para justificar quebras genéricas de sigilo bancário, fiscal ou interceptações telefônicas, instaurando um verdadeiro estado policialesco, em que todos se tornariam potenciais suspeitos sem qualquer elemento concreto. Não se pode admitir investigações pautadas por presunção ou conveniência estatal, sob pena de violação de garantias constitucionais e da paridade de armas no processo penal.

O processo penal é constituído por partes, e o princípio da ampla defesa, aliado ao devido processo legal, exige que tanto a acusação quanto a defesa disponham de meios proporcionais para a produção de provas, sempre observando os limites constitucionais. Outorgar ao Estado poderes ilimitados para quebra de sigilo, sem delimitação e sem causa provável, significa desequilibrar a balança da justiça e afronta direitos fundamentais.

O julgamento do Tema 1148, portanto, configura um verdadeiro divisor de águas no ordenamento jurídico brasileiro. Embora trate da quebra de sigilo de dados telemáticos, a lógica em discussão poderá ser replicada para outras espécies de sigilo e métodos investigativos. Por isso, é fundamental acompanhar atentamente o desfecho deste caso, pois caso prevaleça a permissão para quebras genéricas, poderemos estar diante do início de uma nova e preocupante era na persecução penal, prejudicial ao Estado Democrático de Direito e às garantias individuais do cidadão.