O Indiciamento no Caso Abin Paralela e o Processo Penal Brasileiro

Entenda o papel do inquérito policial, do Ministério Público e do Judiciário no caso.

Nesta semana, a imprensa noticiou a conclusão do inquérito policial conduzido pela Polícia Federal no caso da Abin Paralela. Segundo informações divulgadas, o relatório contém mais de mil páginas e resultou no indiciamento de diversas pessoas por crimes como a tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, além de outras acusações mencionadas pela autoridade policial. A seguir, apresento comentários técnicos sobre a natureza de investigações desse porte e sobre o papel do inquérito policial no contexto do sistema jurídico brasileiro, esclarecendo a ausência de vinculação entre as conclusões da polícia, o Ministério Público e o Poder Judiciário. Ressalto que estas observações tratam de aspectos gerais e técnicos, sem adentrar no mérito ou conhecer os detalhes específicos do caso.

 

Federal Bureau of Investigation - Foto: David Trinks na Unsplash

O inquérito policial é um procedimento administrativo conduzido pela polícia com o objetivo de reunir elementos preliminares que possam subsidiar um eventual processo judicial. Trata-se de uma etapa investigativa preliminar, sem a atuação direta do Poder Judiciário, e que confere à polícia uma discricionariedade regrada, ou seja, a liberdade de conduzir a investigação dentro dos limites estabelecidos pela legislação e em respeito aos direitos e garantias fundamentais. Eventual desrespeito a essas normas pode levar à invalidação de provas ou mesmo à nulidade do procedimento. A finalidade do inquérito é a coleta de indícios de autoria e materialidade delitiva, elementos que, entretanto, não têm caráter de prova definitiva.

O indiciamento, ao final do inquérito, consiste na formalização administrativa de que há indícios suficientes para apontar determinada pessoa como envolvida em uma prática criminosa. É importante compreender que “indícios” não são sinônimos de “provas”, pois as evidências colhidas pela polícia durante o inquérito são unilaterais, ou seja, não foram submetidas ao contraditório ou à ampla defesa. Assim, conforme o artigo 155 do Código de Processo Penal, elementos reunidos na fase investigativa só têm validade para sustentar uma condenação se forem confirmados durante a instrução processual.

 

Ricardo Pinheiro.

Após a conclusão do inquérito, o relatório elaborado pela autoridade policial é enviado ao Ministério Público, que tem total independência para decidir como proceder. São três possibilidades principais: oferecer denúncia à Justiça, caso considere que os indícios colhidos são suficientes para iniciar uma ação penal; arquivar o inquérito, se entender que não há elementos mínimos para sustentar a investigação; ou devolver o inquérito para a realização de diligências complementares. Assim, o indiciamento sugerido pela polícia não tem vinculação obrigatória em relação ao Ministério Público, que pode descartar as conclusões parciais da investigação.

No momento em que a denúncia eventualmente é apresentada, inicia-se o processo judicial, que também confere ao Poder Judiciário plena autonomia em relação às conclusões da polícia e do Ministério Público. O artigo 383 do Código de Processo Penal deixa claro que o juiz não está vinculado às capitulações jurídicas indicadas pela acusação. Isso significa que, mesmo após a denúncia, o magistrado pode proferir uma sentença com base em uma definição jurídica diversa dos fatos apresentada pelo Ministério Público ou pela polícia. Durante a fase judicial, é imprescindível que as provas sejam submetidas à análise contraditória, ou seja, que as partes envolvidas tenham a oportunidade de contestar os elementos de prova apresentados.

Vale exemplificar alguns casos em que provas inicialmente colhidas pela polícia podem ser invalidadas. Nas interceptações telefônicas, por exemplo, reguladas pela Lei nº 9.296/1996, é necessário comprovar sua indispensabilidade ainda no início da investigação; caso contrário, essa prova pode ser excluída do processo. Outro exemplo são os relatórios de inteligência financeira solicitados ao COAF. O Superior Tribunal de Justiça já consolidou entendimento no sentido de que a polícia não pode requisitar tais relatórios diretamente, sem autorização judicial, durante o curso de uma investigação. Isso reforça a necessidade de respeitar normativas legais que garantem a validade das provas.

É fundamental compreender que, ainda que o indiciamento possa ter grande repercussão pública e provocar pré-julgamentos, ele nada mais é do que uma formalização administrativa de supostos indícios. Esses indícios, como temos visto, não têm valor de prova e precisam ser analisados durante o processo judicial para que possam subsidiar uma eventual condenação. No caso da Abin Paralela, por exemplo, mesmo diante de um inquérito volumoso e da formalização do indiciamento pela Polícia Federal, caberá ao Ministério Público decidir se apresentará denúncia, arquivará o caso ou solicitará novas diligências. Caso opte por denunciar, será então responsabilidade do Poder Judiciário examinar os fatos, sendo certo que nem a acusação nem os indiciamentos propostos pela polícia têm o condão de vincular o juiz, que decidirá com base na totalidade das provas analisadas no decorrer do processo.

O nosso sistema processual penal, além de garantir a ampla defesa e o contraditório, é estruturado de forma garantista, buscando equilibrar o poder de investigação do Estado com a proteção dos direitos fundamentais do investigado. Nesse sentido, embora o relatório da polícia, com o indiciamento, tenha peso simbólico e técnico, ele não representa uma condenação ou qualquer juízo de valor definitivo sobre a culpa do investigado. Trata-se, exclusivamente, de um encerramento administrativo das investigações, que só terá prosseguimento caso o Ministério Público, e posteriormente o Poder Judiciário, validem os elementos apresentados. Assim, o caso da Abin Paralela ilustra bem a importância de compreender as distintas funções e limitações de cada órgão no processo penal brasileiro.

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