Uma investigação da Polícia Civil do Piauí, por meio do Departamento de Combate à Corrupção (DECCOR), revelou um esquema institucionalizado de cancelamento indevido de multas de trânsito dentro da Superintendência Municipal de Transportes e Trânsito (STRANS) de Teresina. O esquema envolve políticos, servidores públicos, terceirizados e até empresas que teriam se beneficiado diretamente da fraude, com prejuízo estimado em aproximadamente R$ 1 milhão aos cofres públicos apenas entre fevereiro e junho de 2024.
O inquérito foi instaurado após denúncia anônima e teve como ponto de partida a constatação de que milhares de multas estavam sendo canceladas no sistema “Radar”, administrado pelo SERPRO, empresa pública federal responsável pelo processamento de dados das infrações. O cancelamento ocorria sem qualquer processo administrativo regular, contrariando normas legais e operacionais previstas pelo Código de Trânsito Brasileiro.
Como funcionava o esquema
Segundo apurou a comissão interna da própria STRANS, criada por meio da Portaria nº 45/2024, os cancelamentos eram feitos a partir de ordens diretas de superiores hierárquicos. O ex-superintendente Bruno Pessoa foi apontado como um dos principais articuladores, repassando instruções ao então gerente da Gerência de Gestão de Trânsito (GGT), Lucas da Rocha Lima, que, por sua vez, mobilizava servidores e terceirizados para efetuar os cancelamentos no sistema.
Caso é investigado desde 2024
A comissão identificou ao menos 4 mil autos de infração anulados de forma irregular em apenas cinco meses. As ordens, conforme relatos de funcionários, supostamente vinham de “gente grande”, incluindo parentes do ex-prefeito Dr. Pessoa e assessores próximos. Entre os nomes mencionados estão o da ex-primeira-dama, de uma mulher ligada ao gabinete do prefeito, de uma gerente de Recursos Humanos da Strans, do chefe de gabinete da superintendência e ainda do assessor jurídico do órgão, além de vereadores, empresários e até delegados de polícia.
Empresas beneficiadas
Embora a maior parte dos beneficiados tenha sido de caráter pessoal, envolvendo políticos, assessores e seus familiares, há indícios de que empresas privadas também foram favorecidas. Entre os exemplos mencionados no inquérito, destacam-se veículos com placas de uso corporativo cujas infrações foram “apagadas”, sem justificativa técnica ou administrativa. A investigação ainda não detalhou os nomes dessas empresas, mas relatórios preliminares já cruzam os dados de placas com registros em CNPJs ativos no município.
Crimes identificados
O relatório da comissão interna e o inquérito policial apontam uma série de crimes e infrações administrativas cometidas no esquema, incluindo:
- Corrupção passiva (art. 317 do Código Penal);
- Corrupção ativa (art. 333);
- Peculato (art. 312);
- Prevaricação (art. 319);
- Fraude processual (art. 347);
- Improbidade administrativa (Lei nº 8.429/1992);
- Inserção de dados falsos em sistema informatizado oficial (art. 313-A do CP);
- Associação criminosa (art. 288).
A comissão também detectou que servidores apontados como responsáveis pelo esquema acumulavam cargos de forma ilegal (comissionado e terceirizado), recebendo inclusive horas extras como forma de compensação após serem transferidos de setor, o que reforça o caráter de benefício institucionalizado.
Postura dos envolvidos e reação da gestão
De acordo com os depoimentos colhidos, os próprios envolvidos demonstravam segurança e arrogância em relação às consequências. “Isso não vai dar em nada. Os pedidos vinham de cima. Se der problema, sobra pra gente que fez o serviço”, teria afirmado um dos operadores do sistema. Outros alegaram possuir provas nos celulares, como áudios e capturas de tela, que confirmariam a cadeia de ordens e beneficiários.
O atual superintendente da STRANS, coronel Edvaldo Marques, ao tomar conhecimento das denúncias, determinou a apuração interna e encaminhou relatório completo à Polícia Civil. A comissão formada para investigar o caso detalhou os acessos feitos ao sistema SERPRO, os CPFs envolvidos nas alterações e os veículos beneficiados, revelando o modus operandi do esquema e a estrutura piramidal do comando.
Desdobramentos
A Polícia Civil solicitou à Justiça o levantamento do sigilo bancário e fiscal dos servidores citados, além da convocação para depoimento de todos os integrantes da comissão que produziu o relatório.
“A gravidade do que encontramos vai além do cancelamento de multas. É a estrutura do poder sendo usada em benefício próprio, num sistema de troca de favores que atinge todas as camadas da gestão pública municipal”, afirmou uma fonte da Strans ouvida pelo Lupa1.